sexta-feira, 8 de julho de 2022

O BCE deve subir a taxa de juro para combater a inflação?


Revelar o quadro teórico do qual se extraem as recomendações de política pública é um bom ponto de partida para uma discussão que se pretende transparente. A maioria dos proponentes da subida das taxas de juro tem como quadro teórico implícito a designada macroeconomia do novo consenso, ainda muito influente nos círculos europeus. A inflação é geralmente vista como o resultado de um excesso de procura na economia, que se expressa na exigência de salários nominais excessivos e incompatíveis com uma inflação estável. Uma taxa de inflação baixa é alcançada de forma indireta, através do controlo do poder reivindicativo do fator trabalho: a subida da taxa de juro abranda o ritmo de crescimento ou faz decrescer o investimento e o consumo privados. Essa diminuição da procura agregada causa aumento de desemprego, que reposiciona a reivindicação salarial num nível consistente com uma inflação constante.

Mas a inflação presente não tem origem no excesso de procura, nem na aceleração dos salários nominais. A inflação na zona euro, descontada dos custos de energia e de bens alimentares, é de apenas 3,8%. Os salários nominais negociados situaram-se em 2,8% no primeiro trimestre, o que compara com uma inflação global de 7,4%. Em Portugal, prevê-se uma quebra dos salários reais de 0.8%, o que, a par de um crescimento da produtividade de 3.5%, se concretizará numa transferência adicional de 4,3% do rendimento nacional do trabalho para o capital.

Ao invés, o debate internacional tem atribuído a inflação a três fatores do lado da oferta: os constrangimentos nas cadeias de produção globais, a subida dos custos energéticos, associada à guerra na Ucrânia, e a subida das margens de lucro dos setores oligopolistas, como é o caso da fileira energética, num contexto de desancoragem de preços.

Será que, num contexto em que a inflação é causada pelo lado da oferta, a subida da taxa de juro é eficaz? A resposta até pode ser eventualmente positiva, mas com efeitos dramáticos e desnecessários para a desigualdade e para o desenvolvimento. Configura a metáfora do tratamento que cura a doença matando o paciente O aumento da taxa de juro causaria uma recessão artificial, com o aumento do desemprego e contração salarial. Seriam os desempregados e os trabalhadores, cujos salários reais já estão em queda, a suportar todo o fardo do ajustamento, enquanto as margens de lucro continuariam a subir em muitos setores. Por outro lado, é uma trajetória que compromete o futuro da economia portuguesa. Nos últimos vinte anos, Portugal registou níveis de investimento muito baixos, em parte pelo efeito negativo da austeridade nas taxas de lucro. Aumentar a taxa de juro significa contrair a acumulação de capital, com reflexos muito negativos na capacidade produtiva e no ritmo de incorporação de inovação tecnológica. Ser defensor de uma subida da taxa de juro e ter simultaneamente como prioridades a convergência tecnológica e o aumento da produtividade da economia portuguesa é um paradoxo.

Mas o argumento mais preponderante na oposição à subida da taxa de juro advém da fragilidade macroeconómica em que Portugal se encontra. Com os stocks de dívida pública e privada que Portugal apresenta, usar a taxa de juro como instrumento de política monetária corre o risco de aumentar os custos de financiamento soberanos para níveis incomportáveis, como ficou demonstrado na passada semana. Sem uma solução robusta para os problemas de desenho institucional da zona euro, defender a subida das taxas de juro é aceitar o regresso da austeridade.

(Publicado originalmente no semanário Expresso)

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