Portugal é um dos países da OCDE em que os salários mais perderão com a inflação prevista para este ano. Apesar de se prever uma redução do poder de compra ao nível do período da troika, o Governo não tem mostrado intenções de atuar. António Costa fez questão de explicar que não aprovaria aumentos salariais extraordinários este ano porque “temos mesmo de travar a inflação e não multiplicá-la numa espiral que depois ninguém sabe como é que se controla”. O ministro das Finanças, Fernando Medina, disse que a subida dos salários seria “ilusória” porque provocaria aumentos de preços na mesma proporção.
Para o Governo, a proteção do poder de compra é indesejável. Seguindo a lógica da “espiral salários-preços”, é-nos dito que a definição de aumentos salariais pelo menos alinhados com a inflação obrigariam os empresários a aumentar os preços de forma a preservar as margens de lucro esperadas. Como resultado, teríamos nova subida do nível geral de preços, tornando o aumento dos salários ilusório. No entanto, há pelo menos três motivos para desconfiar desta tese.
Se olharmos, por exemplo, para a evolução dos salários negociados na Zona Euro, percebe-se que estes têm estado relativamente estagnados nos últimos tempos e que não acompanham a escalada dos preços. Mais: a experiência histórica não nos permite afirmar que existe uma relação direta entre aumentos salariais e aumentos dos preços, como concluiu um estudo de economistas da Reserva Federal norte-americana, já referido aqui.
A relação é bastante mais complexa e depende de vários outros fatores, como o peso dos sindicatos e da negociação coletiva, o poder de mercado das empresas ou a origem da inflação.
1. Não são os salários que estão a fazer aumentar os preços.
No cenário atual, em que a inflação se tem concentrado sobretudo no setor da energia, facilmente se percebe que o problema não está num excesso de consumo alimentado pelos salários, mas sim em problemas do lado da oferta. As disrupções que a pandemia e a guerra provocaram nas cadeias internacionais de produção e distribuição estão a afetar os custos de matérias-primas essenciais um pouco por todo o mundo.
2. Além da guerra, o que está a puxar a inflação são os lucros das empresas.
Apesar do impacto da guerra, há sinais de que as empresas – sobretudo as maiores – estão a ser capazes de aumentar os preços numa proporção superior. O poder de mercado permite às grandes empresas aproveitar o contexto para aumentar as margens.
Uma análise publicada em maio pelo Bank of International Settlements mostra que, nos EUA e em alguns países da UE (incluindo Portugal), a experiência das últimas décadas tem sido esta: com as taxas de sindicalização em mínimos históricos e a erosão do poder negocial dos trabalhadores, o que tem aumentado verdadeiramente é a margem média das empresas.
É isso que se tem verificado no setor da energia e no da distribuição, em que o mercado é dominado por um pequeno número de grandes empresas que registaram enormes aumentos dos lucros no primeiro trimestre do ano. Um estudo do Economic Policy Institute sobre a inflação na economia norte-americana entre o início da pandemia e o final do ano passado (antes da guerra) confirma que a expansão dos lucros tem sido a principal responsável pela escalada dos preços.
O mesmo acontece na Zona Euro: Isabel Schnabel, do conselho executivo do Banco Central Europeu, notou recentemente que “os lucros unitários têm crescido a um ritmo sem precedentes” e têm sido “um fator-chave para a inflação”. Existem ferramentas que podem ajudar a mitigar o aumento dos preços, como a limitação das margens de lucro ou a tributação dos lucros extraordinários, que já foi sugerida pela OCDE ou pelo FMI. Não as utilizar e imputar exclusivamente os custos da inflação aos salários é uma decisão política.
3. O crescimento económico é decisivamente influenciado pela procura – e, por isso, pelos salários.
A teoria económica convencional, dominante nas faculdades, no comentário político e entre os membros do governo, assume que o crescimento da economia depende sobretudo de fatores do lado da oferta e, pelo menos no longo prazo, não é influenciado pela procura agregada.
Mas há bons motivos para pensar o oposto.
Numa economia assente no crescimento sustentado dos salários, através da promoção do pleno-emprego e da proteção laboral, as empresas são forçadas a investir e a inovar para responder à procura crescente por aquilo que produzem. Além disso, há estudos empíricos que sugerem que boa parte das indústrias beneficia de economias crescentes à escala, o que significa que, nessas empresas, um reforço da capacidade produtiva (ou seja, um aumento do número de trabalhadores e de equipamentos utilizados) gera um aumento proporcionalmente superior da produção.
Neste sentido, as políticas de rendimentos que impulsionam a procura são mais do que compatíveis com o crescimento da produtividade.
A conclusão é que não há motivos para achar que uma espiral inflacionista está ao virar da esquina. Com a restrição salarial imposta pelo Governo, o que teremos é uma quebra acentuada do poder de compra da maioria das pessoas. E isso terá consequências que, pelo menos desde a intervenção da troika, o país conhece demasiado bem.
Artigo publicado inicialmente no Setenta e Quatro.
O António Costa sabe o que está a fazer.
ResponderEliminarÉ claro que não há indícios de qualquer espiral inflacionista,ao virar da esquina e, muito menos ,impulsionada pela procura.O que assistimos é a uma deliberada e compulsiva recomposição dos preços e das margens do lado da oferta que,mau grado a simplificação de operações que gosta de exibir,com a pulsão tecnológica do comércio electrónico ,acabam estranguladas ou bloqueadas,nas etapas fisícas do circuito de entrega e distribuição dos produtos.A oferta e a disputa dos mercados disputam a fixação dos preços e impulsionam a espiral inflacionista.
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