segunda-feira, 28 de março de 2022

Meias verdades do Instituto +Liberdade: a taxa de IRC e o rendimento dos países

Uma das publicações mais recentes do Instituto +Liberdade diz respeito às taxas de imposto sobre as empresas. O gráfico apresenta-nos o conjunto dos países europeus da OCDE e compara a taxa estatutária máxima de IRC existente em cada um destes com o seu nível de rendimento por habitante (medido por um indicador que representa o rendimento nacional bruto per capita de cada país face à média da região). O instituto destaca o facto de Portugal ter a taxa estatutária mais elevada entre os países escolhidos e de ser também um dos mais pobres. Não é difícil adivinhar a prescrição dos liberais: se descermos os impostos sobre as empresas, estaremos a dar-lhes mais condições para criar riqueza e pôr a economia a crescer. No entanto, os problemas deste raciocínio começam no próprio gráfico partilhado.

Por um lado, o que o gráfico mostra é que não existe qualquer relação entre a taxa nominal de IRC de um país e o seu nível de rendimento per capita. Há países com taxas mais elevadas e níveis de rendimento per capita mais elevados (Alemanha, Áustria, Bélgica ou França), países com taxas mais baixas e níveis de rendimento inferiores (Hungria, Lituânia) e países com taxas semelhantes e níveis de rendimento profundamente diferentes (veja-se, por exemplo, os casos da Suécia e da Turquia, ou do Luxemburgo e da Grécia). O que não há é qualquer relação observável entre a taxa nominal de IRC e o rendimento per capita dos países.

Por outro, há também países cujo valor do rendimento nacional bruto se encontra bastante inflacionado, por exemplo, pela presença de multinacionais no país. É o caso da Irlanda, acerca da qual o indicador escolhido não nos diz quase nada, uma vez que não reflete o nível de vida realmente existente no país.

Além disso, o instituto usa os valores da taxa estatutária de IRC e não os valores da taxa efetiva. Se se olhar apenas para a taxa estatutária máxima, não se tem em conta as isenções ou reduções de impostos de que as empresas beneficiam em cada país. As taxas efetivas são calculadas comparando o valor que é pago em impostos com o valor dos resultados das empresas antes de impostos, dando uma ideia mais aproximada daquilo que estas efetivamente pagam. De acordo com os dados da OCDE, as empresas em Portugal pagam uma taxa efetiva de 25%, ligeiramente acima de países como a Holanda (23,7%), a Áustria (23,4%) ou a Espanha (23,3%), e abaixo de outros, como a Alemanha (28%) ou a França (29,4%).

Baixar o IRC melhorava a situação do país?

A direita tem repetido à exaustão que os cortes de impostos para as empresas estimulam o crescimento económico. A ideia é relativamente intuitiva: menos impostos sobre as empresas permitem-lhes aumentar os montantes que reinvestem, contribuindo para melhorar a produção e os salários. O problema é que os factos teimam em desmenti-la, como mostra a recente revisão de literatura feita pelos economistas Philipp Heimberger e Sebastien Gechert. Heimberger e Gechert analisaram dezenas de estudos empíricos sobre os impactos de cortes de impostos para as empresas e procuraram perceber se havia algum padrão identificável, mas concluíram que, ao contrário do que os partidos de direita têm dito, não há evidência empírica que nos permita afirmar que esses cortes promovem o crescimento económico.

Temos até exemplos recentes do contrário, como o dos EUA: depois de o governo de Donald Trump cortar a taxa de IRC de 35% para 21% (o valor mais baixo desde 1939), o investimento privado não acelerou e os salários não beneficiaram da medida. Quem beneficiou da medida foram os acionistas e gestores de topo, cujos rendimentos aumentam com o reforço da capitalização bolsista das empresas. Para os trabalhadores com salários médios ou baixos, o saldo acaba por ser negativo, dado que o Estado perde receita fiscal com que se financiam os serviços públicos de que todos beneficiam.

Na página do Instituto +Liberdade, pode ler-se que um dos seus objetivos é o de “melhorar a literacia financeira e económica no país” para que “as pessoas tomem decisões informadas”. No entanto, têm sido várias as publicações que constroem argumentos a partir de meias verdades ou da omissão dos factos que não encaixam nestes (por exemplo, aqui, aqui, aqui ou ainda aqui). E isso dificilmente contribui para o debate informado.

 

2 comentários:

  1. "Por um lado, o que o gráfico mostra é que não existe qualquer relação entre a taxa nominal de IRC de um país e o seu nível de rendimento per capita." - Exactamente. Mesmo tendo por base os pressupostos duvidosos do gráfico, o que se observa é uma correlação bastante fraca e não estatisticamente significativa (coeficiente de correlação de Pearson=0.099 e coeficiente de correlação de Spearman=0.173 [p=0.387]). Ou seja, já não se trata apenas da falácia de sugerir (eventual) causalidade na presença de correlações (sem que isso atenda a confundidores, contexto histórico, problemas nos pressupostos assumidos...) - tenta-se agora sugerir (mesmo que de forma subliminar) causalidade quando não existe correlação nenhuma!
    De facto, melhorar a capacidade de análise crítica e metodológica do país é sim prioritário (e daí a importância de posts e blogues como este) para que não se caia nos engodos dos institutos que sonsamente auto-definem os seus objectivos como passando por “melhorar a literacia financeira e económica no país” (para que) “as pessoas tomem decisões informadas”

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  2. Muito bem! Mais uma vez com atenção no referido instituto.

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