terça-feira, 8 de março de 2022

Entretanto, no país da democracia "liberal"...

Jornal Público, 7/3/2022

Torna-se uma crítica recorrente. 

Magistrados de Direito Laboral - antes mais cientes da desigualdade natural da relação laboral entre trabalhadores e entidades patronais que está na base da protecção legal do lado mais fraco - tornam-se mais sensíveis aos argumentos patronais, assentes na salvaguarda da produtividade da empresa e do bem nacional que daí poderá advir. Os trabalhadores e as condições laborais tornam-se - assim - a variável de ajustamento. E para esse fim, organizações sindicais são tidos como organização de "interesses corporativos", criadores de atrito, um obstáculo ao necessariamente fluido e flexível processo organizativo da empresa, tida como a célula sacrossanta da sociedade.

Como se lê da notícia, a empresa Groundforce - na sequência de um acordo de revisão das tabelas salariais para 2017 - decidiu estabelecer como critério de atribuição de prémios o de o trabalhador ter ou não ter filiação sindical.  Os sindicatos STHA (técnicos de handling), SINTAC (trabalhadores da aviação civil), SQAC (quadros da aviação comercial) e SIMA (indústrias metalúrgicas e afins) queixaram-se à Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT), que lhes deu razão e enviou o processo para o Ministério Público que lhes deu razão igualmente. Mas nem tudo correu bem.

A ACT também considerou que existia uma violação do Código do Trabalho, nomeadamente de dois artigos: o que diz respeito à autonomia e independência das estruturas de representação colectiva dos trabalhadores e que proíbem o empregador de “intervir na organização e gestão sindical” bem como “impedir ou dificultar o exercício dos seus direitos”; e o que determina como “proibido e considerado nulo” o acordo ou acto que vise “despedir, transferir ou, por qualquer modo, prejudicar o trabalhador devido ao exercício dos direitos relativos à participação em estruturas de representação colectiva ou à sua filiação ou não filiação sindical”.
 O MP considerou que a decisão violava a autonomia sindical, dificultando o exercício do direito dos sindicatos que não assinaram o acordo e discriminava trabalhadores consoante a sua filiação sindical. Segundo a acusação, esta actuação da empresa contribuiu “para que diversos trabalhadores se desfiliassem das respectivas associações sindicais”. Os sindicatos alegaram que, entre Novembro de 2017 e Maio de 2018, perderam dezenas de associados. Para se ter uma ideia, o STHA diz que se desliaram 90 associados, o SQAC 13 e o SINTAC armou que perdeu 83.

A juíza de instrução criminal deu-lhes razão: 

“Efectivamente resulta dos autos que a actuação da sociedade e do arguido, descrita na acusação, contribuiu para a desliação de diversos trabalhadores das respectivas associações sindicais, o que teve como consequência o seu enfraquecimento”, lê-se na decisão instrutória que acrescenta que “as pessoas são livres de se filiarem ou não ou de se desfiliarem, mas, considerando as consequências económicas que adviriam dessa desfiliação em resultado do proposto pela sociedade arguida e pelo arguido para os trabalhadores, era de prever que os mesmos tomassem tal atitude”.

Foram todos para tribunal. O ex-presidente da Groundforce, Paulo Neto Leite, disse ter sido 

sua intenção pagar o referido prémio a todos os trabalhadores, mas que foi informado pelo departamento jurídico da empresa de que não o poderia fazer aos trabalhadores filiados em sindicatos não aderentes ao acordo. Que todas as decisões foram tomadas em sede de comissão executiva, devidamente apoiadas pelo departamento jurídico e de recursos humanos, e que não foi sua intenção prejudicar alguém. 

Este argumento foi considerado credível pela juíza do processo que decidiu ao contrário da ACT e do MP. 

“Verifica-se desde logo que a prova da acusação e pronúncia se mostra enfraquecida pelas declarações dos assistentes (sindicatos e funcionários), pouco rigorosas, bem como pelos depoimentos das demais testemunhas de acusação, que na sua generalidade apresentaram diferentes percepções do momento em causa”. A magistrada sublinha mesmo que “o que transparece de todo o processo, mais que divergências entre sindicatos e empregadores, são manifestas divergências entre as várias associações sindicais aqui representadas”.

Esta decisão é ainda passível de recurso. Já do desequilíbrio de forças dentro da empresa e na sociedade parece ser mais complicado...


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