sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Falemos de Orçamentos

A rejeição da proposta de Orçamento do Estado para 2022 deixou muita gente perplexa. A impossibilidade de alcançar um acordo com o Governo provocou um debate sobre as propostas negociais que Bloco de Esquerda e PCP colocaram em cima da mesa, sobre o conteúdo da proposta de Orçamento e ainda sobre o método de articulação inaugurado em 2019. Como foi na prática reconhecido pela equipa negocial do Governo, as propostas do Bloco foram essencialmente rejeitadas. No entanto, o Governo argumentou que se estava perante o Orçamento mais à esquerda de sempre. Trata-se de uma declaração ousada que implicaria que a esquerda tinha a responsabilidade de o aprovar, mesmo não tendo obtido grandes concessões. O objetivo destas linhas é avaliar essa ideia, através de uma análise mais detalhada do que tem sido a política orçamental do Governo.

Em primeiro lugar, convém ter em conta que a rejeição da proposta do Governo não põe em causa as principais medidas previstas: o aumento do Salário Mínimo Nacional pode e vai manter-se, como o próprio Governo já garantiu, à semelhança da atualização regular anual das pensões. Além disso, o aumento de 0,9% da função pública e o aumento extraordinário das pensões até €1097 poderão manter-se mesmo com duodécimos, uma vez que o seu impacto orçamental é muito pequeno e a despesa é acomodável. Já se percebeu, portanto, que os principais pontos de dramatização em torno do chumbo do Orçamento não têm fundamento.

Em segundo lugar, é preciso lembrar que as eleições antecipadas são um cenário que só se coloca por imposição do Presidente, já que o Governo podia perfeitamente apresentar uma nova proposta de Orçamento sem necessidade de se forçar uma crise política, como explicaram Guilherme d’Oliveira Martins, que presidiu à comissão de reforma da Lei de Enquadramento Orçamental, ou Miguel Prata Roque, ex-secretário de Estado do PS, no artigo que assinou no Expresso. No entanto, percebe-se que a vontade do Governo era outra e a decisão de Marcelo Rebelo de Sousa parece definitiva. Assim, é preciso olhar para os motivos que justificam que a esquerda rejeite esta proposta de Orçamento de Estado.


“O Orçamento mais à esquerda dos últimos tempos”?

Embora o Ministro das Finanças se tenha entusiasmado e dito que o Orçamento era “o maior impulso macroeconómico das últimas décadas”, a verdade é que os números do seu próprio Ministério o desmentem. O impacto orçamental das poucas medidas que foram avançadas (a revisão dos escalões do IRS, o pequeno aumento salarial na função pública ou o aumento extraordinário das pensões mais baixas) era de apenas 0,5% do PIB, o que continuaria a deixar-nos como um dos países que menos esforços faz para responder à crise.

Vale a pena olhar para os números que o Fundo Monetário Internacional disponibiliza sobre a despesa discricionária que os vários países aprovaram para fazer face à crise, como já foi feito pelo Paulo Coimbra. Os dados são inequívocos: Portugal teve um dos pacotes anticrise mais frágeis de todo o mundo desenvolvido.

Nenhuma economia da periferia do Euro embarcou neste nível de restrição da despesa discricionária em percentagem do PIB (ou seja, em proporção do rendimento do país). Na realidade, todas as economias comparáveis à nossa, a começar pela Grécia (que não está nos dados do FMI), aproveitaram a suspensão das regras para implementar programas de investimento massivos, de forma a recuperar e resolver problemas estruturais das suas economias, mesmo tendo dívidas públicas semelhantes ou superiores à nossa. Nós tivemos uma das maiores contenções orçamentais registadas nas economias avançadas. É de registar que apenas somos batidos por três países nórdicos, cujas recessões em 2020 se ficaram entre os -2,7 e -2,8% e que vão regressar ao PIB real anterior já em 2021. A nossa quebra foi de -7,6% e não se prevê uma recuperação tão rápida, sobretudo face à política de contenção do Governo.


A diferença entre as promessas e a realidade

Há um problema adicional com a proposta de Orçamento apresentada pelo PS: ninguém sabe verdadeiramente que medidas seriam executadas e quais seriam deixadas na gaveta. Isto acontece porque, desde que entrou em funções no final de 2015, o Governo tem recorrido todos os anos a cativações de despesa, incluindo despesa de investimento. Uma cativação é uma “retenção de parte dos montantes orçamentados, que se traduz numa redução da dotação disponível dos serviços e organismos”, como explica o Conselho de Finanças Públicas. Por outras palavras, constitui uma forma de impedir a execução de uma parte da despesa inscrita no Orçamento para cada Ministério. Para descongelar essas verbas, é necessário obter autorização do Ministério das Finanças. Ora, o Governo tem utilizado este dispositivo ano após ano: o orçamento anuncia despesas ou aumentos de despesas que acabam por ficar na gaveta do Ministro das Finanças. João Leão (à semelhança do seu antecessor, Mário Centeno) encarrega-se de garantir que boa parte dessa despesa não é executada.

Veja-se o caso dos cuidadores informais: há dois anos, o Governo inscreveu uma verba de 30 milhões de euros para financiar os projetos piloto relativos aos cuidadores informais. Destes, gastou menos de 300 mil euros, ou seja, 1% do total. No ano passado, dos 30 milhões para os cuidadores foram gastos apenas 700 mil euros. Este ano, pela terceira vez, o Governo promete 30 milhões de euros para este grupo. Infelizmente, não é difícil adivinhar o desfecho.

O caso do investimento público também é ilustrativo: em relação ao que foi anunciado pelo Governo nos sucessivos Orçamentos, ficaram por executar €785 milhões em 2016, €681 milhões em 2017, €735 milhões em 2018, €949 milhões em 2019 e €507 milhões em 2020, ao que se somam €351 milhões na previsão do próprio Governo para este ano. Ao todo, foram 4008 milhões que foram anunciados pelo Governo mas não saíram da gaveta. O aumento do investimento público proposto pelo Governo para 2022 (€1298 milhões) não chega a 1/3 do que ficou por gastar nestes anos. Não é por acaso que, nos últimos anos, o país registou os níveis de investimento público mais baixos da sua história recente.

A política de cativações draconianas de Centeno e Leão foi um foco de tensão entre o PS e os partidos à esquerda porque se tornava uma ferramenta de publicidade enganosa. Todos os anos eram anunciados fortes aumentos de investimento público que poderiam devolvê-lo a níveis razoáveis, mas os aumentos efetivamente verificados foram sempre bastante menores. Este foi um dos aspetos mais dececionantes do Governo do PS: revela uma ausência de compreensão da importância do investimento público para a consolidação de políticas de esquerda e para o desenvolvimento do país.

A situação não se alterou após a pandemia. Se olharmos para a média do investimento público nos últimos dois anos em todos os países da União Europeia, Portugal foi o país que menos investiu. É difícil contrariar a ideia de que o combate à crise tem sido feito pelos mínimos. É mesmo no investimento público que se vê a fragilidade da resposta em Portugal, precisamente num momento que podia ser usado para vencer atrasos antigos.


Se não é a dívida, é o quê?

Mesmo entre os que reconhecem que a resposta à crise tem sido manifestamente insuficiente, há quem argumente que havia pouco a fazer face à elevada dívida pública do país. Este argumento parte de um erro fundamental: o de achar que a dívida se reduz através da restrição da despesa. Durante uma crise como a que atravessamos, a restrição da despesa do Estado só agrava os efeitos da recessão, uma vez que nos impede de dar a resposta necessária - aliás, na última crise financeira, os países da Zona Euro que mais cortaram a despesa foram aqueles que tiveram maiores aumentos do rácio da dívida pública. Além disso, a longo prazo, a política de desinvestimento piora os serviços públicos sem quaisquer benefícios para as contas do Estado. O próprio FMI estima que cada euro investido pelo Estado se traduz num crescimento de 2,7 euros do PIB em 2 anos – por outras palavras, os benefícios dos investimentos mais do que compensam o seu custo inicial. Com isso, é possível reduzir a dívida em percentagem do PIB através do crescimento económico (e não de cortes na despesa).

O SNS é um bom exemplo: 41% do dinheiro público destinado à Saúde é gasto com privados, incluindo na contratação de serviços que podiam ser prestados diretamente pelo serviço público se o Estado adquirisse os equipamentos necessários, o que ficaria mais barato a médio prazo. Desengane-se quem pensa que a vaga de demissões de profissionais de saúde a que temos assistido nas últimas semanas não está relacionada com a ausência de condições no SNS.

Acresce que a contratação de profissionais, sobretudo em exclusividade, reduz outras despesas correntes. Basta ver o caso do IPO, que perdeu cerca de 200 profissionais de saúde este ano. É o próprio diretor que afirma que as carências ao nível dos profissionais saem mais caras em horas extraordinárias e contratação a privados. As necessidades de investimento e valorização profissional no SNS são evidentes para todos. Não as resolver é que constitui uma má gestão dos recursos públicos.

Mais difícil ainda é perceber por que motivo o PS recusa medidas sem qualquer impacto orçamental, como as alterações à legislação laboral para reverter algumas das medidas da Troika que ainda se mantêm. Na realidade, várias dessas medidas teriam impactos positivos sobre os salários com consequências positivas no crescimento e, por essa via, nas contas públicas. Se o problema não é a dívida pública, tem de haver outros motivos para a intransigência do PS.


É tempo de ser exigente

A esquerda depara-se agora com uma escolha decisiva nas eleições: ou transfere o seu voto para o PS, recompensando a estratégia de auto-suficiência que António Costa tem levado a cabo desde que recusou acordos com os antigos parceiros da Geringonça em 2019, ou reforça a votação dos partidos à esquerda, forçando o PS a procurar novos entendimentos sobre questões estruturantes.

A primeira hipótese aproxima o PS da maioria absoluta, desejada pelo Primeiro-Ministro apesar do histórico pouco recomendável. As correntes centristas do PS já se estão a mobilizar em áreas tão fundamentais como o trabalho ou a saúde: basta ver o estudo sobre saúde encomendado por Francisco Assis a Maria de Belém através do Conselho Económico e Social, a entrevista de Adalberto Campos Fernandes em que o ex-ministro descarta a exclusividade no SNS, ou até a crescente anuência de António Costa às chantagens das confederações patronais, como aconteceu com o pedido de desculpas à CIP e com o súbito desaparecimento das negociações para o fim da caducidade da contratação coletiva. A pressão para encostar o PS ao centro político e à agenda dos lobbies privados só vai aumentar.

A alternativa é regressar ao espírito e aos instrumentos da Geringonça: um acordo escrito que garanta um mandato de estabilidade em torno de um projeto para o país. Uma estratégia de desenvolvimento assente na recuperação de direitos, na refundação do Serviço Nacional de Saúde e numa política económica centrada no combate aos problemas estruturais do país, na educação, habitação ou transportes. Essa política é viável, mas precisa de uma esquerda forte, com a capacidade de influenciar as escolhas do Governo. Uma esquerda que não abdica de políticas progressistas e não desiste das convergências necessárias.

José Gusmão e Vicente Ferreira. Publicado inicialmente em Esquerda.Net (aqui).

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