Há dias ficámos a saber que o número de funcionários públicos aumentou em quase 7 mil desde o final de 2020. Sem surpresa, a imprensa e os comentadores de direita apressaram-se a falar nas gorduras do Estado e no despesismo sem fim.
O que eu gostaria de ter visto e não vi era quem fizesse as perguntas que interessam, tipo: os novos funcionários públicos são necessários? O assumir destes compromissos pelo Estado português é financeiramente sustentável? O Estado está a munir-se das competências de que necessitamos que tenha?
Os dois gráficos que aqui apresento dão pistas para a reflexão.
Primeiro, mais de metade do reforço de funcionários públicos desde 2014 (ano a partir do qual o número começou a aumentar) corresponde a pessoal qualificado da saúde e da educação. Se tivermos presente que grande parte dos assistentes técnicos e operacionais também trabalham nestas áreas, o valor aproxima-se de 2/3.
Acresce que havia dezenas de milhares de pessoas que já trabalhavam para o Estado nestes e outros sectores disfarçados de prestadores de serviços (a recibos verdes ou como tarefeiros de empresas de recursos humanos), pelo que grande parte do aumento no volume de funcionários públicos é apenas a regularização das relações contratuais já existentes.
Quanto ao impacto orçamental destas contratações, vale a pena olhar para números, antes de anunciar que vem aí o diabo. O peso dos salários na despesa pública corrente tem vindo a cair continuamente desde 2003, sendo hoje metade do que era no início do século. Isto explica-se, entre outros factores:
- pelo congelamento dos salários desde então (com a excepção do ano de 2009),
- por uma década de paralisia nas progressões na carreira,
- pela saída de funcionários com salários muito mais elevados do que os novos contratados,
- pela reestruturação da administração (exemplo, a redução dos dirigentes de topo).
Ou seja, o Estado não está a "engordar" assim tanto em número de profissionais - e onde o número de trabalhadores aumenta é mesmo nas áreas onde a falta de gente é evidente. O problema da sustentabilidade financeira não se coloca a este nível - não só a renovação de quadros implica poupanças, como grande parte dos novos contratos são temporários (logo, não são compromissos permanentes do Estado).
A questão que se deveria colocar é outra: conseguirá o Estado atrair as pessoas com as qualificações necessárias, dada a persistência destes salários baixos, contratos precários, poucas perspectivas de progressão e o bullying permanente de quem acha que o Estado está sempre a mais?
Era bom que uma certa Esquerda percebesse, tal como uma certa Direita, que existe um conjunto de funções (e só essas) para as quais o Estado é indispensável, como a dispensa de cuidados de saúde, de educação, a propriedade de monopólios naturais (aeroportos, correios e linhas de transmissão de energia, linhas férreas), e a assessoria das decisões políticas (em lugar de serem consultoras e sociedades de advogados privadas a fazerem isso, tantas vezes gerando conflitos de interesse).
ResponderEliminarO recurso aos privados nestas áreas gera sempre custos acrescidos e um pior serviço. Mas a vontade de intervir na Economia tout court não gera apenas ineficiências, faz com que o Estado de facto seja incapaz de devidamente acorrer àquelas áreas em que deve estar presente. Um custo de oportunidade, em suma...
O'Leary tem razão quando diz que dinheiro investido na TAP é dinheiro que o Estado Português deixa de aplicar onde deve, por exemplo na ferrovia. Obviamente, ele diz isso porque quer ocupar os slots da TAP na Portela, quando a nossa opção deveria ser a de dispensarmos o mais possível o recurso ao transporte aéreo.
Cabe pois à Esquerda definir bem os limites da ação do Estado, para que não seja a Direita a acabar por fazê-lo, em lugar de assumir como seu projeto um qualquer Estado Estratega. Bem sabemos em que isso acabou por redundar, e nem me refiro à falência total do Bloco de Leste e sim ao falhanço das políticas de um Harold Wilson (que Boris Johnson parece querer emular, não fora o reacionarismo Tory de sempre) ou de um Mitterrand durante os primeiros anos do seu primeiro mandato...
O problema é que vivemos desde há uns anos um jornalismo miserável e totalmente parcial feito na maioria por indivíduos que no seu tempo de estudante não tinha média para entrar em mais lado nenhum. Temos assim uma sociedade mediática que detesta e até se tenta vingar de quem era estudou mais e na generalidade era melhor, tentando ridicularizar permamentemente a função pública e reduzi-la a meros carimbadores de papéis em repartições sempre à pinha. Professores, médicos etc ou seja a vasta maioria que forma a função pública são caricaturizados e quase gozados. Ainda por cima esquecem-se que se os ordenados são historicamente mais elevados nesse sector porque pelo menos durante muitos anos no pós revolução atraía sempre de facto os melhores (antes de tentarem destruir saúde pública etc) e teria sempre que resultar nessa diferença salarial. O mau jornalismo, viciado, precário, impregnado de viralidades comezinhas das redes sociais e feito por demasiada gente incompetente é provavelmente um dos maiores problemas do país na actualidade.
ResponderEliminarCaro Ricardo Paes Mamede,
ResponderEliminarA rubrica "transferencias correntes" corresponde ao que?
Noto que o recuo no peso da despesa corrente com pessoal corresponde grosso modo ao avanco do peso das "trasferencias correntes"(18,2% recuo relatico com pessoal, 23% avanco relativo das "transferencias correntes").