quinta-feira, 26 de agosto de 2021

A Ordem do Dia


«A 20 de fevereiro de 1933, 25 industriais e banqueiros encontraram-se com Hitler, que precisava de dois terços do parlamento para aprovar a Lei de Concessão de Plenos Poderes. A reunião foi na residência oficial do Presidente do Reichstag, Hermann Göring. Éric Vuillard descreve-a, em «A Ordem do Dia»: «O essencial da mensagem cingia-se a isto: era preciso pôr termo a um regime fraco, afastar a ameaça comunista, suprimir os sindicatos e permitir que cada patrão fosse um Führer na sua empresa». O objetivo não era a subversão do sistema, era o de salvaguardar o que interessava no sistema: a prosperidade daquelas respeitáveis fortunas.
Depois da saída de Hitler e do discurso de Göring, Hjalmar Schacht sorriu e rematou: «E agora, meus senhores, é passar à caixa!». A fina flor da finança e da indústria alemã ofereceu, naquele dia, dois milhões de marcos à campanha de Hitler. E quem ali estava não eram aquelas pessoas. Eram empresas que hoje são motores da economia alemã e europeia. E que não se limitaram a ajudar Hitler a chegar ao poder, lucraram com a exploração do trabalho dos campos de concentração.
Hitler não foi o chefe de um grupo de lunáticos que assaltou o poder, contra a vontade da elite. Foi a solução de recurso dessa elite. Em todas as outras vitórias da direita autoritária, mesmo que menos extremas, acontece o mesmo. Instalou-se uma associação automática entre capitalismo e democracia e, de forma ainda mais ousada, entre capitalistas e democracia. Haverá, na elite económica, quem tenha mais ou menos amor à democracia. Haverá muito poucos para quem esse amor supere o apego aos seus próprios interesses. E há momentos da história, que nem são excecionais, em que a democracia e a liberdade são suas inimigas. Interessa-lhes na medida em que lhes serve, dispensam-nas na medida em que são um empecilho. Precisam do Estado para impor as suas «reformas», defender os seus negócios e a sua propriedade e reprimir as veleidades democráticas do povo. Dispensam o Estado quando ele limita o seu poder. Haveria, entre os industriais que financiaram a entrega do poder absoluto a Hitler, alguns nazis. Outros tratavam apenas da «ordem do dia». Muitos seriam antissemitas, mas todos perceberiam a vantagem de ter um agitador que apontasse o dedo para bem longe deles.
Têm saído notícias sobre empresários já com algum peso a financiar o Chega. É natural e acontece com quase toda a extrema-direita por esse mundo fora. O Chega é muitas vezes apresentado como antissistémico, mas se assumirmos que o sistema é, antes de tudo, o económico, é um reforço musculado do sistema. Se o Chega crescer, outros, talvez mais «respeitáveis», irão seguir-lhes o exemplo. Reductio ad Hitlerum? Não estou a dizer que Ventura é nazi. É mesmo só oportunista. Estou a dizer que a sua função, para esta elite, é a de sempre. Como escreve Vuillard, no fim do livro: «Não se cai duas vezes no mesmo abismo. Mas cai-se sempre da mesma forma, com uma mistura de ridículo e de pavor. (...) O abismo está rodeado de moradas imponentes
».

Daniel Oliveira, A Ordem do Dia

2 comentários:

  1. É muito cedo para anunciar o abismo no partido de André Ventura. Neste momento, este recolhe simpatias no meio de muita gente descontente e com ar reles, para as eleições autárquicas. Por exemplo, na Azambuja, a ex-presidente da junta desta freguesia saiu do PS para concorrer a presidente da câmara pelo «Chega». Quem a conhece sabe, de antemão, que esta mulher é ambiciosa e está descontente com a forma como o PS não a considerou se quer para presidente da mesa da Assembleia. Em Aveiras de Cima e Cartaxo, o próprio Chega também apresenta candidatos.
    Para além disso, Daniel Oliveira começa o seu texto com Hitler em 1933, quando o mesmo foi corrido com uma grande guerra 12 anos depois. Se André Ventura está como Hitler em 1933, ainda vamos ter muito que o aturar até ser corrido de vez.

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