domingo, 18 de julho de 2021

Quando deixamos o mercado cuidar dos idosos

Para Marx, Schumpeter, Polanyi e outros a tendência para expandir a lógica de mercado a todas as áreas da vida em sociedade é uma característica central do capitalismo. Em 1961 havia em Portugal 3 idosos por cada 10 jovens, hoje há 16 idosos por cada 10 jovens e as previsões apontam para o dobro dentro de 50 anos. Já se vê em que direcção as fronteiras do mercado estão a ser estendidas.  


Se há um século cuidar de idosos era parte da vida em família, nos países com Estados Sociais mais desenvolvidos foi-se tornando uma preocupação do Estado. Esta reportagem do consórcio de jornalistas europeus Investigate Europe (onde participa o jornalista do Público Paulo Pena) mostra como os lares de idosos têm vindo a tornar-se num faroeste de busca de lucros.  

A história é semelhante ao que se encontra noutros domínios. A falta de resposta dos serviços públicos abre oportunidade de negócio a investidores privados. A transformação de uma actividade social orientada para os cuidados num negócio orientado para a obtenção do lucro traduz-se em desumanização das relações entre pessoas, em desconsideração pela dignidade dos idosos, em relações laborais precárias, e em ritmos e intensidade de trabalho insustentáveis para os profissionais. 

À medida que o negócio atrai empresas multinacionais, a concentração do sector num pequeno conjunto de grupos financeiros conduz à aposta na dimensão imobiliária (em detrimento dos cuidados), a estruturas sobre-endividadas (o que faz aumentar a pressão para os baixos salários e a degradação dos cuidados), a lucros excepcionais (disfarçados de juros por empréstimos, pagos entre empresas do mesmo grupo) e à fuga aos impostos.  

O disfarce dos lucros e a degradação dos cuidados leva muitos a dizer que o problema está na falta de regulação e de apoio estatal. Quer uma quer outra são reais, mas o problema não está só aí. Grupos económicos cada vez mais poderosos conseguem capturar os reguladores. Estados pressionados para subsidiar a actividade privada subinvestem na fiscalização. Aumenta a litigância nos tribunais sobre o respeito pelas regras - e quase sempre ganha quem consegue pagar os honorários mais chorudos a exércitos de advogados. Já vimos tudo isto a acontecer na saúde, está a começar nos lares para idosos.  

Conta-nos o Investigate Europe que há países dispostos a inverter este plano inclinado. Na Áustria e na Noruega, países onde ainda existem sociais-democratas à moda antiga, reserva-se a actividade relacionada com os lares a empresas sem fins lucrativos ou resgatam-se os lares existentes para a esfera do Estado.  

Em Portugal, a política até aqui seguida reserva os apoios públicos a empresas do 3º sector, que sucessivos governos viram como a solução para este desafio contemporâneo. A pandemia pôs à vista de todos as condições impróprias em que operam centenas de lares. Isto pode abrir espaço a um reforço da regulação, da qualificação de profissionais e do investimento público no sector. Mas pode levar também à reivindicação já conhecida de que o melhor é deixar o mercado funcionar (com subsídios públicos aos grupos privados, claro).  

Leiam a excelente reportagem do Investigate Europe e percebam o que está em causa. Nos manuais de introdução à economia (ou, ainda mais, nos escritos de Smith) o mecanismo de mercado é fascinante. No mundo real, o resultado não é bonito de se ver.

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