sábado, 6 de março de 2021

Um comício à chuva

Fotos de Maria Cecília Alves
 
Foi dos primeiros comícios do PCP em Lisboa a seguir ao 25 de Abril. Pelo menos é a memória que tenho. Chovia sem parar. E, no entanto, a praça do Campo Pequeno estava apinhada, fechada pelas copas dos guarda-chuvas, panos abertos sem pensar no vento molhado. Havia uma intensidade nas vozes, uma força nas palmas, todos os sentimentos se punham nos refrões que se cantavam. Havia uma alegria sem meias tintas, qualquer coisa de "desta vez, ganhámos". E este "ganhámos" éramos todos, quem andara décadas a marrar pelas paredes a pensar em todos, a falar baixo nos cafés, em reuniões escondidas, a fugir dos cercos da polícia e das suas cargas, de ser apanhado e levado para o Governo Civil onde rapavam o cabelo aos rapazes, a pensar que se tinha de tomar diversos transportes de noite para um encontro que nos fora marcado com alguém que estava na clandestinidade, a saber o risco de prisão, até porque se sabia como eram por dentro. Corredores longos e vazios com portas, sons metálicos a ecoar, uma fechadura e uma cela imensa, escura, com beliches metálicos, colchões de palha rotos, cobertores cheios de pó, um pequeno almoço de café e fatias de pão, nada para fazer entre quatro paredes, enquanto o guarda de capote e espingarda ao ombro passava com medo de se molhar do lado de fora de duas grades de uma janela metida para dentro. Chovia também nesse dia no Forte em Caxias. E havia lama. E nós crianças tínhamos aquela alegria de não olhar para mais nada e metíamo-nos com o guarda: "Então, senhor guarda, está bom tempo aí fora?"

Anos a fio disso. Mas agora tudo estava por fazer e ia ser possível construir tudo. Outro país.

Levanto a cara do écran do computador e está a dar um programa de televisão -  "O último apaga a luz". Tudo parece hoje como que adormecido, ensabonetado, expurgado de emoções fortes, vibrantes. A palavra tornou-se demasiado fácil, barata, e perde-se tanto tempo com nada. Utiliza-se a televisão para lixo que é remunerado com publicidade. Anos a fio disto. E tempo é coisa que não temos. Mas só se aprende com tempo.

É preciso tudo outra vez.

5 comentários:

  1. O que falhou para ser necessário este novo recomeço? Fazem falta relações intensas e insubstituíveis, o "amor" assumiu sozinho o papel da pertença.

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  2. Caro anónimo,

    Houve muita coisa que funcionou e existe e que, apesar de todos os ataques, se mantém viva e sobrevive. Mas houve muita coisa que falhou nesta democracia. Está ainda tanto por fazer e que merecia uma atenção permanente, articulada, consistente. E até de convencimento popular. Porque em democracia vota-se e o combate é desigual. Sempre foi, mas democracia é ainda mais. O poder do que existe é sempre superior ao do que é novo. Os meios de comunicação estão mal distribuídos e poder do dinheiro nota-se bastante, demasiado para ser uma democracia. A democracia é uma coisa imprescindível, mas é demasiado complicada para ser deixada ao Deus dará dos elementos.

    E o socialismo como ideia deve ser mais que um sonho: deve ser uma forma diferente de viver a nossa vida. E dá muito trabalho. Requer várias coisas: uma ideia clara do que deve ser feito, uma forma alargada de expor o que se pretende (porque deve ser uma ideia que convença) e, mais que tudo, uma política de unidade que a viabilize.

    Dá muito trabalho estar disponível sempre. Dá muito trabalho convencer sem insultar e afastar. Dá muito trabalho manter uma organização viva, em barricada, mas sem ter uma cabeça de barricada. E, por isso, todos são precisos, mas dá muito trabalho manter todos mobilizados.

    Talvez todos tenhamos pensado que era mais fácil, que todos estavam de acordo com uma ideia. Mas talvez tenha sido ingenuidade – por alguma razão tinha havido 48 anos de fascismo. Hoje, ao fim de tantos anos, as novas gerações têm a vida apeada e adiada pela aplicação repetida de teorias erróneas e interesses egoístas. Tanto por fazer, tanto por convencer. E no entanto custa tanto.

    Mas com ideias claras sobre o que deve ser feito é mais fácil mobilizar, em vez de apenas defender. Um passo de cada vez. Com calma e paciência, tudo se faz.


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  3. Muito obrigado pela sua opinião João Ramos de Almeida, a realidade tem muito de aparente, muitas vezes o que parece forte e coeso é na verdade algo pronto a desmoronar. O poder e a forma como as pessoas se posicionam relativamente a este expõe a superfície, engana, tornam difícil a interpretação mas a luta é o que traz as pessoas à vida, a única forma de nos fazermos representar é querer coisas que efetivamente não existem.

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  4. Caro anónimo,
    Nada existe, vai existindo. E o que pode parecer forte, embora seja efetivamente fraco naquele momento, pode tornar-se efetivamente forte porque se conjugaram elementos até então ausentes. Aquilo que se pede, como diz, é a capacidade de estar desperto e atento, disponível (como quando se é jovem) para querer mudar o mundo para aquilo que - como diz - não existe ainda. E como nas relações entre as pessoas, essa vontade de fazer coisas juntas, acaba por nos mudar também. E é preciso que estejamos igualmente atentos para aprender a cada passo do caminho esse caminho de mudar.

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  5. A nossa transformação pelos outros pode ser a derradeira liberdade, a afirmação não é um acto do indivíduo, o individualismo é na verdade um enorme isolamento. Talvez seja a subjetividade a essência do existir. Achei pertinente a sua referência à juventude, porque é que não se ganha com a idade? Que sentido faz morreremos em vida?

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