quarta-feira, 3 de junho de 2020

Petição ao Governo de Portugal - Segurança social para todos

Em muito pouco tempo, a pandemia da covid-19, combinada com o colapso económico que produziu, tornou evidente que as nossas vidas dependem crucialmente da forma como as sociedades estão dotadas de provisão pública. Estamos hoje todos mais conscientes de que foi esta que nos permitiu lutar contra a pandemia, atenuar os seus efeitos e tentar garantir a sobrevivência de tantos cidadãos e de tantas famílias que, entregues a si próprios, estariam em muito piores condições para enfrentar esta crise dramática. Contudo, perante a actual situação económica e social de excepcional gravidade, torna-se urgente criar uma nova prestação social, um ‘rendimento de sobrevivência’, que, no quadro do Programa de Estabilização Económica e Social em elaboração, acuda com celeridade à calamidade social em curso.

De um momento para o outro, ficou à vista de todos como é vital dispormos de um Serviço Nacional de Saúde bem apetrechado, gerido segundo o critério último do serviço público, dotado de trabalhadores motivados, competentes e remunerados com justiça. Hoje, não podemos aceitar o regresso à normalidade do subfinanciamento crónico do nosso SNS porque a qualidade dos serviços de saúde é parte integrante da segurança de que precisamos para viver em sociedade.

Esta pandemia tornou evidente que a nossa segurança depende da forma como a sociedade portuguesa está estruturada, e mostrou que a propagação do vírus e as suas consequências variam com as condições de vida das classes e grupos sociais. Os portugueses com maior mobilidade internacional transportaram o vírus para o Norte do país, mas foram os idosos, sobretudo os residentes em lares modestos, e os estratos sociais de baixo rendimento, que mais sofreram os efeitos desta fase inicial da pandemia. Entretanto, as cadeias de  transmissão do vírus na Grande Lisboa mostram que a população mais pobre (incluindo imigrantes sazonais), é a mais atingida, e certamente será a mais activamente transmissora do vírus. Aceitar o regresso à normalidade anterior à pandemia significa normalizar a enorme desigualdade que hoje provoca fracturas na sociedade portuguesa, o que, além de moralmente intolerável, também implicaria aceitar que a segurança social que hoje todos prezamos permanecerá precária no plano da saúde pública.

O súbito congelamento da maior parte da actividade laboral produziu, com a aplicação do mecanismo lay-off, uma importante redução no rendimento de grande número de famílias. O enorme aumento do desemprego que se tem registado também implicou uma perda substancial de rendimento. Segundo o Barómetro Covid-19,uma em cada quatro pessoas que ganham menos de 650 euros mensais (agregado familiar) tiveram perda total do seu rendimento. É possível que grande parte daquele milhão de pessoas que trabalhava no sector informal da economia esteja agora sem qualquer rendimento. De um momento para o outro, a pandemia lançou muitas centenas de milhar de portugueses numa enorme insegurança social, o que constitui uma fortíssima interpelação moral, ética, social e política a cada um de nós, e ao Estado português. Recordemos que a nossa Constituição da República, no Artigo 63º-1, declara: “Todos têm direito à segurança social.”

A pandemia de covid-19 está a gerar uma outra pandemia mais dolorosa, a da extensão da pobreza, da fome e da exclusão social. Todos temos ouvido as declarações dos mais altos responsáveis das instituições de solidariedade social chamando a atenção para o número crescente de pedidos de ajuda alimentar, e para a preocupante escassez de meios para lhes responder. A presente situação de emergência social impõe um grito de alarme. O respeito pela dignidade humana, num Portugal cada vez mais solidário, como ficou escrito no Artigo 1º da nossa Constituição, exige um salto qualitativo na forma de enfrentar a dramática insegurança em que caíram tantos portugueses.

O Estado português tem a obrigação moral e constitucional de enfrentar energicamente esta gravíssima crise social através dos serviços do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Esta calamidade tem de ser a primeira prioridade do Governo de Portugal e, para que seja concretizada, tem de haver dinheiro para atribuir, no mais curto prazo, um ‘rendimento de sobrevivência’. Já não há tempo para elaborar instrumentos administrativos que, por todos os meios, pretendam apurar com minúcia a real carência de quem se expôs à humilhação de pedir ajuda alimentar. Quando o Estado tiver recrutado os funcionários indispensáveis ao bom funcionamento do Estado social, então fará as verificações que entender necessárias. Hoje, sem demoras, é preciso transferir um mínimo de rendimento para todos os que já estão identificados pelas organizações que distribuem alimentos e refeições.


Em Portugal, há cidadãos a passar fome e isso é intolerável num Estado europeu dotado de serviços de Segurança Social. E também é intolerável que, no nosso país, o recurso à esmola (pecuniária, ou em espécie) seja a rotina da sobrevivência. Note-se que o Paquistão, apesar da debilidade das estruturas administrativas do seu Estado, já conseguiu executar uma transferência única de rendimento que permite aos beneficiários sobreviver durante quatro meses. A segurança social dos mais fragilizados com esta pandemia também pode ser garantida em Portugal porque o nosso país tem recursos materiais, humanos e organizativos para fazer, pelo menos, o que o Paquistão já fez. Trata-se apenas de vontade política.


Perante a gravidade do que o país está a viver, os subscritores do presente texto chamam a atenção do Governo para a urgência da criação de uma nova prestação social, um ‘rendimento de sobrevivência’, que, no quadro do Programa de Estabilização Económica e Social em elaboração, de forma desburocratizada, acuda com celeridade à calamidade social em curso. Com esta medida, ganharia algum conteúdo de segurança social o princípio político, tantas vezes invocado nos media, de que nesta crise ninguém ficará para trás. É este o nosso desejo.

Subscritores: Jorge Bateira (promotor), Adelino Gomes, Alberto Péssimo, Albino Ribeiro Cardoso, Alfredo Soares-Ferreira, Ana Gomes, António Almeida Moura, António-Pedro Vasconcelos, Constantino Sakellarides, Carlos Martins, Daniel Oliveira, Domingos Lopes, Fernando Dacosta, Fernando Góis Moço, Filipa Subtil, Graça Morais, Hélder Mateus da Costa, Henrique Prior, Helena Roseta, Isabel Allegro de Magalhães, Isabel do Carmo, Januário Torgal Ferreira, João Rodrigues, João Vasconcelos-Costa, Joaquim Azevedo, Jorge Wemans, José António Pinto, José Castro Caldas, José Luís Garcia, José Maria Silva, José Moreira de Azevedo, José Mattoso, José Reis, José Veiga Torres, Júlio Mota, Manuel Brandão Alves, Manuel Carvalho da Silva, Manuel Correia Fernandes, Manuel Sobrinho Simões, Margarida Chagas Lopes, Maria da Conceição Moita, Maria José Espinheira, Manuel Martins Guerreiro, Nuno Higino Cunha, Pedro Vaz Patto, Ricardo Paes Mamede, Rogério Almeida Santos, Rui Nobre Moreira, Rui Spranger, Teresa Vasconcelos, Vasco Lourenço, Victor Tavares Morais, Viriato Soromenho-Marques.


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