Um soldado norte-americano de origem alemã traduz um nazi num julgamento em Itália.
É nossa obrigação resgatar do esquecimento economistas do passado, sabendo que também estes mortos podem não estar a salvo da barbárie económica, sobretudo os que reconheceram o seguinte facto: a economia, toda ela, é política e moral.
Com honrosas excepções, economistas destes nunca ganharam e quase nunca ganharão o chamado Prémio Nobel, o máximo reconhecimento da área atribuído por um banco central em memória do criador dos verdadeiros prémios.
É preciso então não esquecer as palavras sábias de um economista político raro na história do pensamento contemporâneo. Foi um dos chamados pioneiros do desenvolvimento a seguir à Segunda Guerra Mundial: andava em busca de desequilíbrios frutíferos no quadro de economias mistas. Escreveu um notável artigo nos sombrios anos oitenta, uma destilação de décadas de experiência e de reflexão:
“A generosidade, a benevolência e a virtude cívica não são recursos escassos de oferta limitada, mas também não são competências que possam ser melhoradas e expandidas de forma ilimitada com a prática. Em vez disso, tendem a exibir um comportamento complexo e compósito, atrofiando quando não são praticadas e invocadas pelo regime socieconómico prevalecente e tornando-se de novo escassas quando são defendidas e estimuladas em excesso. Para tornar as coisas ainda mais complicadas estas duas zonas de perigo (...) não são conhecidas e muito menos são estáveis.” [minha tradução]
Muitos têm feito de tudo desde essa altura para instituir um regime socioeconómico único, onde a virtude cívica quase não tenha lugar, onde demasiado possa ser resumido a motivações egoístas e a a análises custo-benefício, um instrumento político rigorosamente equivocado.
Creio que conhecemos hoje melhor uma zona de perigo para onde nos pode conduzir uma certa economia. E ao fazê-lo, estes economistas produtores de maus hábitos, de fatais atrofiamentos, diziam-se expurgados de valores – as coisas seriam sempre o que as idealizações de mercado ditassem. No fundo, cheiravam ao mesmo de sempre: ao mau hálito do utilitarismo, a filosofia espontânea de uma certa economia tão normativa que tem de se mascarar de positiva, desprezando todos os que conhecem alguma história e filosofia da ciência. Na realidade, factos e valores estão sempre entrelaçados.
Sabemos que a generosidade, a benevolência e a virtude cívica têm de ser visibilizadas e precisamos de instituições onde possam ser praticadas e estimuladas, já que temos de ter outras onde tais motivações não são aparentemente tão importantes, até porque são tantas vezes invisíveis. Hoje, todos vêm essas motivações de norte a sul deste rectângulo.
Sem uma certa prática, a barbárie ganha. Há economistas que nunca esqueceram esta conversa. Na tradição de Hirschman, e apesar de uma ou outra concessão ao neoliberalismo, Samuel Bowles é um exemplo de persistência: em artigo recente, publicado em co-autoria com Wendy Carlin, no site que divulga a economia convencional e que está hoje um pouco desestabilizado na sua orientação, defende que a pandemia torna as motivações não egoístas absolutamente centrais numa nova narrativa económica que está emergindo.
A questão, que Bowles explorou, num dos meus artigos de referência de economia comportamental e institucional, é a da relação entre instituições e preferências, as chamadas preferências endógenas, ou seja, a forma como as instituições moldam o que fazemos, as motivações convocadas e logo o que somos.
Esta é uma conversa que não pode deixar de ter lugar. Há mais conversas destas que terão de ter lugar dentro e sobretudo fora da academia.
Como o Dr José Castro Caldas dizia à dias, a propósito do editorial "keynesiano" do financial times, é necessário reconhecer que este discurso "keynesiano" da ortodoxia neoliberal tem apenas o objetivo de apelar à "segurança social" das corporações, substituindo a segurança social dos cidadãos.
ResponderEliminarSão os mesmíssimos que recebem apoios do estado e, a seguir, distribuem dividendos aos accionistas.
Temos um ministro fofinho das corporações, chamado siza vieira, dentro de algumas semanas ministro das finanças.
Vai ser o fim da macacada.
Ora nem mais. E aposto que o Centeno acaba como a MariLu Albuquerque: a "trabalhar" na venda de informação privilegiada aos abutres da nossa desgraça, quiçá até, se a falta de vergonha for aquela de que desconfio, numa empresa detida pelos acionistas da LoneStar...
EliminarMais um excelente texto de João Rodrigues. Com uma linguagem depurada e com classe
ResponderEliminar"... a economia, toda ela, é política e moral".
“A generosidade, a benevolência e a virtude cívica não são recursos escassos de oferta limitada, mas também não são competências que possam ser melhoradas e expandidas de forma ilimitada com a prática"
Elevando o debate, derruba alguma da tralha dos mantras do pensamento económico único
«A generosidade, a benevolência e a virtude cívica …atrofiando quando não são praticadas e invocadas pelo regime socieconómico prevalecente e tornando-se de novo escassas quando são defendidas e estimuladas em excesso. »
ResponderEliminarCultivar a virtude cívica tem que abranger toda a sociedade. Imaginar que ela pode ser cultivada e mantida em qualquer círculo restrito ou actividade limitada, é ilusão ou idiota presunção.
Considerando que:
- Nesta democracia política os partidos, sendo legitimamente portas de acesso a cargos com relevo na acção do Estado, não têm qualquer prática de exigência de qualidades morais e cívicas dos seus militantes, não os diferenciando de meros aderentes.
- A economia do país está entregue à actividade privada, sistematicamente propagandeada como couto de vícios cívicos, o que é dito ser inevitável consequência da sua própria natureza, e por tal necessariamente mal contidos por leis.
Esperar por um qualquer oásis cívico, onde se viu e vê grassar o compadrio e o nepotismo, em que a política presume a ilegitimidade de que os seus protagonistas vejam julgado o seu carácter - que o mesmo é dizer julgada a sua prova de vida – significa que antes deve esperar-se uma profunda alteração destes factores.
Ao afirmar que "a economia, toda ela, é política e moral" está a remover à economia qualquer vertente científica ou aproximadamente determinística. O que é que a Lei da Oferta e da Procura tem de político ou moral, por exemplo?
ResponderEliminar"a economia,toda ela, é (NAO EXCLUSIVAMENTE) política e moral"
EliminarEstá bem assim, ou vai continuar a complicar só porque sim?
Não creio que possa atribuir à lei da oferta e da procura o mesmo estatuto que atribui, por exemplo, à lei da gravidade. A primeira só é lei no quadro de relações orientadas para o lucro e, portanto, é política e moral. A sua "naturalização" já é política e moral.
EliminarA lei da oferta e da procura é, na heroína, moral e política.
ResponderEliminarAqueles que querem fazer da economia uma ciência, como por exemplo a física, são normalmente indivíduos que querem arranjar desculpas para justificar a ganância absoluta, o poder e a crueldade de uma classe dominante sobre os restantes.
ResponderEliminarAs leis da física cá estarão para sempre, as leis económicas mudam.
Capitalismo não foi o primeiro sistema económico, não será o último, Capitalismo substituiu Feudalismo, Capitalismo será substituído por algo...
A "ciência" Capitalista será, no seu devido tempo, tornada irrelevante para compreender a sociedade.
E isto é assim porque o "fim da História" é manifestamente exagerado, a História continuará a ser feita para o desespero dos privilegiados do actual regime económico!
«Capitalismo substituiu Feudalismo»
ResponderEliminarFácil, fácil, ignorar uns milhares de anos de História da Propriedade.
Inteiramente de acordo, mas se se defende que a moralidade deve ter um lugar no pensamento político e económico para além de um puro raciocínio utilitarista (que procurando argumentar que se defende os direitos do colectivo contra os interesses de certos grupos desprotegidos, na realidade defende os interesses dos poderosos, como se vê na pressa de alguns em reabrir a actividade económica), então é preciso discutir sobre a legitimidade ou ilegitimidade dos meios na acção política.
ResponderEliminarE aí, lamento dizer-lhe, João Rodrigues, quem tece loas ao maquiavélico Lenine ou à URSS não tem uma perna para se segurar. Se quem se bate pela Justiça aplica tácticas de luta que fariam o mais cínico capitalista corar de inveja, ou torce por uma crise geral da UE que irá piorar significativamente a condição de todos, sobretudo dos mais pobres, a única diferença que essa pessoa tem em relação aos piores de entre aqueles que critica é que eles têm poder e ela não.
Junte-se a isto uma teimosia ideológica que leva algumas pessoas a ignorar os riscos que correm, elas e as suas famílias no contexto da luta política (em particular os militantes mais velhos) e está bom de ver, o que escreve aqui não passam de intenções pias.
A moralidade é a moralidade dos fins e dos meios. Uma mera moralidade de fins é pior do que a imoralidade, porque ao menos esta última não é hipócrita...
"Fácil, fácil, ignorar uns milhares de anos de História da Propriedade."
ResponderEliminarEu não ignorei nada troll Jose. Capitalismo substituiu Feudalismo, e olha que Capitalismo não é assim tão diferente do Feudalismo...
No Feudalismo havia o Senhor feudal e o servo.
No Capitalismo há o Capitalista e o trabalhador.
E por falar em ignorância...
Porque é que ignoras os milhares de anos de dependência das classes dominantes do Estado.
Sabes bem que os teus adorados Capitalistas não são diferentes do Senhor feudal, são uns mamões do Estado, aliás, de muito longe os maiores mamões!
Rapara como até têm o Banco Central ao seu dispor para criar todo o dinheiro necessário para os salvar sempre que é necessário.
Deves borrar-te de medo que a maioria comece a pensar que afinal esta relação Capitalista-Trabalhador não é lá grande coisa e tem que mudar...
Jaime Santos e as investidas quase que freudianas contra o mensageiro.
ResponderEliminarCansa.
E quem quer um papagaio, prefere o modelo original
Tal como cansa a verborreia de José, agora em modo de passarão inquieto e também palrador. Percebe que lhe estão a desmontar a barraca dos seus postulados ideológicos. Afinal há também uma diferença ética entre quem olha para os mercados e os vê nesciamente como a mão invisível de Deus e quem olha para o Homem e o vê muito para lá do lucro uberalles.
ResponderEliminarÉ tramado também ver um beato enredado na sua própria teia de hipócrita moralista bramar desta forma contra os partidos, como se todos iguais, numa acéfala identificação do Chega ou do PP com o oposto espectro político.Ou como se o bloco central de interesses constituísse o reportório partidário nacional
ResponderEliminarE com uma arrepiante falta de memória esquecer que a trampa da União Nacional de forma ilegítima abria portas de acesso a cargos com relevo na acção do Estado e do fascismo, "sem qualquer prática de exigência de qualidades morais e cívicas dos seus militantes".
Destes sermões de pastores prenhes de públicas virtudes e de privados vícios estamos também todos fartos. Ainda por cima a lembrar os queixumes daquele tipo com voz de cana rachada,cujos discursos bolorentos jazem nas paredes dos seus cultores
"Aqueles que querem fazer da economia uma ciência, como por exemplo a física, são normalmente indivíduos que querem arranjar desculpas para justificar a ganância absoluta, o poder e a crueldade de uma classe dominante sobre os restantes.
ResponderEliminarAs leis da física cá estarão para sempre, as leis económicas mudam."
Palavras acertadas de Geringonço
O mais irónico de tudo é que este JPF, que aqui esgrime em favor da economia como ciência e que empasta a boca e o ego com referências aos seus conhecimentos "científicos", também neste contexto muda de tom e de som com o andar da carruagem
Ouçamos JPF himself aqui há uns tempos:
"A Ciência não é democrática, é uma Ditadura implacável, e o Ditador são as evidências".
Quem diz isto é quem, num dos seus livrecos, faz publicidade à sua veia de "cidadania participativa, poesia lasciva, ocultismo e filosofia" . Uma espécie de "Bíblia (sic)
Uma fraude este JPF
Também nestas cousas científicas, como se constata
Esta fotografia que encima o artigo de João Rodrigues apareceu na capa do New York Times e é de Hirschman olhando atentamente para um general da Wehrmacht, Anton Dostler, onde servia de intérprete no primeiro dos julgamentos de crimes de guerra dos Aliados. Dostler foi o primeiro a ser julgado pelos tribunais de crimes de guerra após o fim do conflito e foi considerado culpado de ordenar a morte de prisioneiros de guerra tendo sido executado.
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