Diria que é um documentário generalista e acessível, mas dirigido a um público informado e interessado em questões económicas e políticas, e que algum conhecimento prévio do trabalho de economistas não neoclássicos pode ajudar.
Por exemplo, a hipótese da instabilidade financeira de Hyman Minsky (aqui resumida por Steve Keen) e a conclusão de Keynes e Schumpeter segundo a qual o investimento não é financiado por poupança, mas pela expansão endógena da oferta monetária bancária (aqui confirmada pelo Banco de Inglaterra), sendo pilares fundamentais da compreensão do capitalismo e da sua inerente instabilidade, constituem também o tipo de conhecimento que permite perceber, por exemplo, o funcionamento opaco e muito pouco escrutinado dos bancos centrais e, simultaneamente, expor a ficção neoliberal da sua independência e a sua real dependência dos mercados financeiros. Tudo questões, mais ou menos, diretamente tratadas no documentário.
O documentário evidencia também como, entre os anos 80 e os anos 90 do século passado, sob forte influência, senão mesmo imposição, da potência monetária que, com o fim de Bretton Woods, consolidou a sua posição hegemónica no novo arranjo monetário internacional (os EUA), o banco central do Japão é objeto de uma profunda reconfiguração que o compatibiliza com a nova ordem imposta pela antiga potência ocupante e o torna, pretensamente, independente.
É, a meu ver, um momento importante do filme até porque, de seguida, Werner expõe a responsabilidade daquele reconfigurado ator monetário, o banco central do Japão, na criação de uma enorme bolha de crédito, à qual se seguiria uma inevitável crise económico-social que acabaria por produzir o consentimento - que não existia na sociedade nipónica - para uma reestruturação neoliberal da economia, ou seja, para as tais ‘reformas estruturais’ que nós, no sul da Europa, infelizmente, tão bem conhecemos.
Um outro momento de particular interesse (1h22m24s) é aquele em que as questões relacionadas com a zona euro são abordadas. Começa assim: “Os exemplos das crises japonesa e asiática ilustram como crises podem ser manipuladas para facilitar a redistribuição da propriedade económica e para implementar mudanças legais, estruturais e políticas. Hoje [2014] eventos similares estão em progresso na zona euro”.
Nesta parte, o documentário, para além de apontar a responsabilidade do BCE na bolha de crédito que antecedeu a crise, erradamente designada, das “dívidas soberanas”, também denuncia, primeiro, o facto de aquele banco central ter podido prevenir as crises bancárias que se seguiram e não o ter feito, e, segundo, de só ter agido depois de ter promovido a transferência de parcelas de soberania orçamental dos estados membros do euro para a União Europeia e de a ter obtido.
“As deliberações dos órgãos de decisão do BCE são secretas. A mera tentativa de influenciar o BCE – por exemplo, através do debate democrático e da discussão - é proibida de acordo com o Tratado de Maastricht”, ouve-se, a seguir, no documentário, que continua assim: “o BCE é uma organização internacional que está acima e fora das leis e jurisdição de qualquer nação individual. Os seus quadros superiores transportam passaportes diplomáticos e os arquivos e documentos dentro do BCE não podem ser alvo de busca ou retenção por qualquer força policial ou do ministério público”.
Quando estamos a aproximar-nos da parte final (1h22m24s), vemos Richard Werner a perguntar a Trichet, o antecessor de Draghi e Lagarde na presidência do BCE: “Onde é que, no tratado de Maastricht ou nos estatutos do BCE, diz que é trabalho do BCE apoiar a reforma estrutural ou qualquer outra agenda política?”. Vale a pena atentar no descaramento e no viés ideológico da resposta de Trichet, mas para isso terão de ver o documentário. Se o fizerem, não se arrependerão, prometo.
De seguida, Richard Werner, continua chamando a atenção para o facto da comissão europeia se ter apoiado num único estudo para justificar a independência do BCE e desse estudo ter sido manipulado para obter o resultado desejado, ou seja, para concluir indevidamente que os bancos centrais independentes conseguem inflações mais baixas.
O documentário termina recordando diferentes e muito significativos episódios históricos em que as manobras (“deception”) de bancos centrais independentes, bancos que não prestam contas a nenhum tipo de órgão eleito, resultaram em verdadeiras calamidades públicas, com repercussões muito graves e conhecidas de todos.
Como é possível estarmos na posse de toda esta informação e não concluirmos que é mais que tempo de colocar os bancos centrais sob escrutínio democrático? Como não usar todo o poder à disposição do BCE para fazer face à pandemia que estamos a viver? Como podemos permitir que, num momento desta gravidade, o BCE forneça financiamento monetário à banca privada, que objetivamente lhe dê dinheiro (isso mesmo, dado), mas esteja impedido de financiar os Estados de onde emana a confiança e o aparato económico-legal que sustenta a sua emissão puramente fiduciária?
*Legendas em português disponíveis nas definições do documentário no YouTube.
Muito bom! Revela de facto como um mecanismo virtuoso de financiamento da economia foi subvertido, capturado e posto ao serviço da especulação financeira.
ResponderEliminarO que mais irrita não é o bce, pois já todos perceberam para que serve o bce: para restaurar e manter o poder da burguesia.
ResponderEliminarO que irrita é ver umas alminhas penadas portuguesas a dizer que continuamos a gastamos demasiado dinheiro em mulheres e vinho.
É demasiado asqueroso.
Por grande coincidência descobri (e vi) este documentário há um par de dias. E também eu digo: vale *mesmo* a pena ver. A desfaçatez de Trichet é de facto, inacreditável.
ResponderEliminarÉ uma grande ajuda para mandar a ideia idiota de que "o dinheiro vem do trabalho" para o caixote do lixo da história. O dinheiro é, já Aristóteles dizia, uma ficção colectiva. Que tem um preço -- a taxa de juro -- que é controlada pelos bancos centrais. Esta é a parte que toda a gente sabe; a outra parte, ainda largamente ignorada, é que estes organismos "independentes" (dos eleitores, bem entendido) também são responsáveis pela *quantidade* de dinheiro existente! O filme mostra como esse poder foi usado no Japão para criar uma crise; e por conseguinte, como o mesmo poder pode ser usado agora na Europa para ajudar a combater a recessão que se avizinha. Como disse no início, vale muito a pena ver.
Um banco central não disponível para comprar votos ou para disfarçar as consequências a quem o faz é essencial à democracia política e à segurança das nações.
ResponderEliminarQuando é que nós nos vamos organizar e exigir justiça?
ResponderEliminarEstes criminosos de elite, também conhecidos por "banqueiros", criam crises e miséria de propósito, justiça tem que lhes ser servida!
Caro José,
ResponderEliminarHaverá certamente casos em que uma maior independência do banco central seja benéfico. Mas no caso BCE? Um banco cuja comissão executiva tem mais imunidades do que até os chefes de missões diplomáticas? (*) E que aquando da eleição do Syriza na Grécia, disse basicamente: "façam o que nós vos dizemos... or else!"? Acha mesmo que um banco central que age deste modo é "essencial à democracia política"? Essencial para hegemonia alemã, sem dúvida, mas para a democracia? Essa nem como piada serve... :-)
(*) - Devo dizer, a este propósito, que quando se menciona isto no documentário, eu não acreditei. Mas fui pesquisar, e de facto é o caso. Ver por exemplo aqui: https://www.ecb.europa.eu/pub/pdf/scplps/ecblwp4.pdf, p.30: "ECB’s Executive Board have full diplomatic status [...] Whereas diplomats enjoy immunity only in the host state, members of the Executive Board also enjoy immunity in their country of origin."