quarta-feira, 11 de março de 2020

Crise de oferta, crise de procura e crise da política económica


A Comissão Europeia decidiu flexibilizar as regras orçamentais para que os Estados-membros possam gastar mais (aumentar os défices que, por efeito da recessão, serão de qualquer modo maiores), e foi buscar aos restos dos fundos comunitários algum financiamento para investimento. Com muitos outros economistas, entendo que não é a intervenção, em escala e qualidade, que esta crise exige.

Antes de mais, é preciso dizer que política monetária é ineficaz para esta crise, tal como já o foi para retirar a zona euro do marasmo da crise financeira anterior. O foco da política não pode ser nas empresas (custos, financiamento); tem de ser na procura que as sustenta. E de nada serve sustentar temporariamente empresas que já estavam mal a pretexto de evitar o desemprego. O foco tem de ser na criação de emprego através de um Serviço Nacional de Emprego que identifique as necessidades dos territórios e financie (com salário digno e descontos para a SS) os postos de trabalho que vão acolher os desempregados.

O que os Estados-membros vão fazer é gastar o dinheiro apressadamente em obras que vão ser adjudicadas de forma duvidosa (para ser rápido, como na Parque Escolar com Sócrates) e cujos orçamentos vão ser empolados e gerar lucros que não estimulam o consumo e o emprego. Noutro dia falarei sobre o que deve ser uma política de pleno emprego verdadeiramente Keynesiana, bem diferente de gastar dinheiro apressadamente.

O gráfico mostra a interdependência entre a crise da oferta que estamos a viver e a crise da procura que dela decorre. Mostra como esta última vai agravar a primeira, gerando-se um círculo vicioso que, para ser rompido, exige uma intervenção forte, em larga escala, direccionada para o emprego porque é aí que está a procura que sustenta as empresas no mercado interno.

Para não sobrecarregar a figura, a vertente externa não foi considerada. Se a pandemia tiver proporções dramáticas nos EUA, e se a estratégia da Rússia de rebentar com a indústria do petróleo de xisto, fazendo baixar os preços, tudo isso vier a produzir uma grave crise nesse país, então haverá repercussões importantes sobre a Europa, com efeitos negativos sobre as nossas exportações que agravarão os efeitos da crise do vírus.

As intervenções previstas pela CE e Estados-membros terão seguramente algum efeito amortecedor mas, a meu ver, vão ficar muito aquém do que é necessário e não serão dirigidas à fonte da procura, os trabalhadores. Ainda por cima, há uma herança muito negativa da crise financeira e da intervenção desastrosa da troika.

Nota: nem todas as setas significam agravamento da crise; as relacionadas com a baixa do preço dos combustíveis e com a intervenção da CE, são factores de atenuação da crise.

5 comentários:

  1. Talvez com o desenho aquela alma penada que assombra as caixas de comentários dos LdB lá "chegue".

    É difícil saber o que Christine Lagarde diz em privado aos MF no conselho europeu, mas o "whatever it takes" dela é manifestamente insuficiente e só para efeito mediático.

    Talvez o conjunto de medidas mais coerente seja o de Richard Murphy, que embora seja referente ao UK poderia ser adaptado à zona euro:

    https://www.taxresearch.org.uk/Blog/2020/03/04/an-economic-plan-to-beat-the-impact-of-coronavirus/

    ResponderEliminar
  2. A ciência económica tem sido utilizada para validar todos os abusos que sabemos e que conhecemos, mesmo os economistas mais progressistas tendem sistematicamente a apresentar modelos que de alguma forma correspondem ao que já temos, a falta de audácia e de profundidade nunca vão permitir o verdadeiro avanço, o ponto não é o que temos ou o que conseguimos ter, o centro de todas as coisas é liberdade não consentida, o realismo formal é uma forma corrompida.

    ResponderEliminar
  3. O post mostra uma realidade. Desde há muito tempo que a União Europeia deixou de ter um programa social e economica. Adoptou a política do ultraliberalism economicoo e
    estruturas autocráticas de centralismo burocratico.
    A situação é de expectativa , pois não se sabe as cosequencias futuras.

    ResponderEliminar
  4. Nestas circunstâncias, a navegação só pode obviamente ser à vista. Qualquer plano a longo prazo acaba necessariamente desmentido pelos acontecimentos...

    É isso o que esta alma penada tem para dizer aos anónimos que habitam igualmente nas caixas de comentários...

    E depois é curioso, será que alguém me pode dar um exemplo de um sítio onde isto tenha resultado? É que creio que não foi por falta de tentativas ou por falta de dinheiro (no início). Foi mesmo porque tarde ou cedo a coisa faliu...

    Deve-se isso ao capitalist encirclement? Pois, também, mas o que sugere, a revolução mundial do Trotsky?

    A diferença entre a dupla Costa+Centeno da Tsipras+Varoufakis é que a primeira compreende as condicionantes (leia-se relações de força) do mundo em que vivemos... A segunda não compreendia...

    Acabou mal, excepto talvez Varoufakis que deve estar muito rico com os livros que escreveu a explicar por que o seu plano era óptimo e a posição dos seus adversários era imoral e apesar de tudo perdeu em toda a linha...

    ResponderEliminar
  5. A alma penada "navega à vista" porque se recusa a aprender a usar o astrolábio "Sapir" a balestilha "Pettifor", o sextante "Keynes", o cronómetro "Mazzucato" ou o GPS "Piketty".

    A dupla Costa+Centeno arrisca-se a fazer a figura triste daqueles prisioneiros que um acidente qualquer liberta das grilhetas (aquelas de Bruxelas) e que não sabem o que fazer com a liberdade.

    Aqueles que têm apêgo à sua liberdade trabalham para modificar as "condicionantes", não se resignam a adoptar a linguagem do opressor.

    Se o sentido das relações de força é útil, não é menos útil a fidelidade aos interesses do país.

    ResponderEliminar