domingo, 23 de fevereiro de 2020

A hipótese da democracia na América


Depois da vitória retumbante do socialista Bernie Sanders nas primárias do Nevada, confirmando que as bases democratas estão a emancipar-se da tutela dos democratas de Wall Street, talvez seja útil chamar a atenção para a entrevista que Lloyd Blankfein deu ao Financial Times (FT) esta sexta-feira.

Blankfein foi o responsável máximo da Goldman Sachs, entre 2006 e 2018. Carlos Moedas, agora tão incensado, e Durão Barroso devem ter privado com ele. São o nosso orgulho. Em 2007, pôde receber 54 milhões de dólares; um ano antes deste banco ter sido salvo pelo Estado com uma injecção de pelo menos dez mil milhões. Na prática da crise, a teoria neoliberal é mesmo outra.

A Goldman Sachs, vá lá perceber-se porquê, já foi descrita como “uma grande lula vampiro com os tentáculos enrolados na cara da humanidade, sugando implacavelmente o seu sangue, em busca de qualquer coisa que cheire a dinheiro”.

Pois bem, este democrata de Wall Street, antigo apoiante de Hillary Clinton, ou não tivesse a presidência do marido concluído o trabalho de desmantelamento das estruturas de regulação financeira herdadas do New Deal, afirmou ao FT o seguinte: “pode ser mais difícil para mim votar em Sanders do que em Trump”.

Trump, de resto tal como Obama, tem sido um fiel amigo de Wall Street, como o Vicente Ferreira já aqui indicou. Com um património avaliado em mil milhões de dólares, Blankfein diz ao FT que não se considera rico. Como pode Blankfein considerar-se rico? Afinal de contas, Bloomberg, a grande esperança do extremo-centro para derrotar Sanders, tem pelo menos sessenta vezes mais.

A conhecida oposição de Blankfein a uma maior progressividade fiscal, que caiu de forma radical nos EUA nas últimas décadas, está em linha com a meticulosa investigação empírica sobre “preferências políticas” nos EUA: os ricos são mais activos politicamente e mais favoráveis a causas económicas neoliberais, da fiscalidade à segurança social, do que o norte-americano dito médio. Que surpresa, já que a política de classe não é suposto existir, muito menos nos EUA...

Quem se lembra de uma taxa marginal de imposto sobre o rendimento de mais de 90% no período de maior dinamismo económico e de menor desigualdade nos EUA do pós-guerra, quando existiam freios e contrapesos, por exemplo sindicais, ao poder das várias fracções do capital?

Isso foi antes da institucionalização da brutalmente desigual economia política neoliberal. Esta é agora associada às “mortes por desespero” nas classes trabalhadoras, à redução em três anos consecutivos da esperança média de vida nesse país, um tema de investigação digno de um premiado com o dito Nobel da Economia chamado Angus Deaton (prometo voltar a este tema crucial e à responsabilidade de uma ciência em larga medida corrompida...).

Será que a democracia, que só pôde começar a florescer numa economia mista, com elementos socializantes fortes, tem alguma hipótese contra as várias formas, “republicanas” e “democratas”, de plutocracia?


5 comentários:

  1. Responda-me o João Rodrigues. Acha? Ou acha ao invés que toda a máquina eleitoral republicana com literalmente (quase) todo o dinheiro do mundo e com ajuda russa à mistura vai cair em cima de Sanders quando este conseguir confirmar que será o candidato nomeado pelos Democratas?

    Os militantes dos Partidos de Esquerda têm um pequeno problema com o eleitorado que pode levar os seus líderes ao poder. É que as preferências de uns e de outros normalmente não coincidem. Mas ai dos eleitores se não concordarem...

    Este artigo instrutivo de Andrew Rawnsley é sobre o 'sorry state of Labour', mas o que é dito também é aplicável aos EUA, embora Sanders seja pelo menos bastante mais arguto do que Corbyn:

    https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/feb/23/tony-blair-and-the-lefts-perverse-preference-for-failure-over-success

    Não, uma derrota de Sanders frente a Trump, sobretudo se acompanhada pela perda do controle da Casa dos Representantes pelos Democratas, não inaugurará o princípio de uma oposição continuada a Trump que desembocará na vitória de um socialista em 2024.

    Representará, provavelmente, isso sim, o fim dos últimos resquícios de democracia na América e a sua transição de um plutocracia para o neo-patrimonialismo tout-court, à moda russa... Porque julga que Trump gosta tanto de Putin?

    A Esquerda anda a pôr as suas fichas todas em causas (Brexit) ou candidatos (Corbyn, Sanders) que fazem as delícias da Direita Reaccionária, ou porque ela se bateu durante décadas pelas ditas causas, ou porque tais candidatos são vistos com horror pelo eleitorado mais centrista.

    Por isso, depois não se queixem se acordarem com a Direita Reaccionária...

    A pureza ideológica e de princípios sofre normalmente de um profundo inconveniente.

    É minoritária...

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  2. Esse Sanders, que fala em socialismo como se isso tivesse algo a ver com justiça social, ainda nos vai garantir aturar um grunho como o Trump mais quatro anos.

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  3. Os "especialistas" da comunicação social, os Manueis Carvalho lá dos Estados Unidos, já estão a dizer que Putin está a ajudar Bernie Sanders!

    A sem-vergonhice desta gente não tem limites! Mas também prova o desespero por parte das ditas "elites".

    Um "Manuel Carvalho" do canal por cabo MSNBC compara a vitória de Bernie Sanders à invasão da França pelos Nazis!!

    https://www.theguardian.com/us-news/2020/feb/23/msnbc-chris-matthews-sanders-nevada-win-nazi-invasion

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  4. SEI que nao tem nada a ver com o teu post, mas nao ha ninguem que diga ao senhor ministro que com esta baderna do aeroporto vai queimar-se queimadinho, ou pelo menos chamuscar-se chamuscadinho? De um tipo que tem um excelente faro politico nao esperava eu o desastre que se anuncia...

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  5. Uma analise do que se está a passar na comunicação social "mainstream" em relação a Sanders e sua potencial nomeação como candidato a Presidente dos EUA.

    https://www.youtube.com/watch?v=6ZAFlqJQDdI

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