segunda-feira, 25 de novembro de 2019

PIB potencial, ingerência real

A Comissão Europeia publicou ontem [nota: a 20/11] as suas análises preliminares dos anteprojectos de Orçamento para 2020 dos estados da zona euro. Como habitualmente, contém uma série de puxões de orelha aos estados membros considerados indisciplinados do ponto de vista orçamental, incluindo Portugal, Itália, França e Espanha. Do lado dos bem-comportados, que como costume têm a Alemanha e a Holanda à cabeça, é vagamente referido que poderiam fazer mais para apoiar o investimento e o dinamismo na zona euro, mas a coisa fica-se por aí.

Na análise do anteprojecto de Orçamento do Estado português, a principal crítica da Comissão é dirigida ao risco de incumprimento em termos de saldo estrutural, variável especialmente obscura mas central para o regime de disciplina orçamental imposto pelas regras europeias. Apesar do saldo orçamental global estar cada vez mais próximo do equilíbrio (défice previsto de -0,1% em 2019 e 0,0% em 2020), a Comissão alerta que o saldo estrutural é mais deficitário e com tendência de deterioração, de -0,3% em 2019 para -0,5% em 2020. E é isto que a Comissão considera uma inaceitável violação das regras.

Para que se perceba melhor o que está em causa, vale a pena explicar brevemente que o saldo estrutural corresponde ao saldo orçamental global (receitas menos despesas do Estado), ajustado ao efeito do ciclo económico e uma vez descontadas as medidas pontuais. A ideia é aferir a situação das finanças públicas em termos fundamentais, descontando em cada ano o efeito daquilo que é meramente pontual e o efeito do ciclo económico (uma vez que as fases de recessão deterioram as receitas e despesas e as fases de expansão melhoram ambas as coisas).

Para calcular este saldo estrutural, é por isso necessário estimar até que ponto a economia se encontra numa fase de expansão ou de recessão, e a forma de fazer isso é através do cálculo do chamado PIB potencial, que corresponde ao nível de produto que a economia produziria se estivesse a operar em pleno, de uma forma considerada sustentável. Acontece, e é aqui que a coisa começa a descambar, que esse pleno está longe de ser o máximo alcançável: em muitos casos, como aliás sucede atualmente com a economia portuguesa, esta metodologia considera que a economia pode encontrar-se acima do PIB potencial, ou por outras palavras, a crescer mais do que é sustentável. No caso português, a Comissão Europeia considera que o hiato do produto (diferença entre o PIB efectivo e o PIB potencial) é positivo desde 2017, como se vê na figura em baixo (dados da AMECO - Comissão Europeia).


E porque é que a Comissão Europeia pensa isto? Basicamente, porque considera que o nível de desemprego está já abaixo do seu nível ‘sustentável’, representado por outra variável ainda mais obscura e artificial conhecida por “desemprego natural” (também designada por NAIRU ou NAWRU, que no fundo corresponde ao nível de desemprego considerado compatível com a manutenção de níveis estáveis de inflação).

Na prática, porém, esta taxa de desemprego ‘natural’ não é mais do que uma média móvel, um ‘alisamento’, da taxa de desemprego efectivamente verificada, como se pode ver facilmente observando esta outra figura em baixo, em que estão representadas a taxa de desemprego real da economia portuguesa e a taxa de desemprego ‘natural’ estimada pela Comissão (dados da AMECO, novamente).


Tudo isto é obviamente absurdo: ninguém no seu perfeito juízo considerará que o nível ‘natural’ de desemprego da economia portuguesa passou de 13% para 7% em meia dúzia de anos, ou que os actuais 6% de desemprego em Portugal são insustentavelmente baixos. O conceito é frágil do ponto de vista teórico, parcial do ponto de vista ideológico e desastroso na prática.

E no entanto, é o que está na raiz de tudo isto. Recordemos: a Comissão considera que o nível de desemprego em Portugal está neste momento abaixo do ‘natural’; por causa disso, considera que o PIB português está acima do produto potencial; por causa disso, considera que o saldo estrutural é mais deficitário do que devia; por causa disso, avisa que Portugal está em risco de incumprimento; e é este raciocínio opaco, absurdo e bizantino que apoia a ingerência da Comissão nas opções orçamentais portuguesas e, no limite, a ameaça de aplicação de sanções de centenas de milhões de euros.

Seria difícil imaginar um conjunto de regras mais intrinsecamente recessivo e menos democrático. Uma receita para o desastre.

(publicado originalmente no Expresso online a 21/11/2019)

15 comentários:

  1. A ingerência real das ajudas europeias nunca é assinalada e haveria de ser avaliada a sua democraticidade.

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  2. Não acaba por aí, podendo qualquer um imaginar o resultado de retirar investimento (lamento, Dr. Rio, são ordens) e, consequentemente, rendimento à economia privada sobre-endividada. A seguir o conselho, pelo menos a projecção de desemprego vai bater certo... até ser ultrapassada.

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  3. Não percebo, Alexandre Abreu, o método de cálculo do PIB potencial pode estar errado, mas o conceito de que o PIB real pode estar acima de um valor médio parece-me do mais puro bom-senso, dada a existência de um ciclo económico.

    Fica pois a pergunta, qual a taxa de crescimento anual média ao longo de um ciclo económico? Só essa variável poderá dizer se o nível de endividamento médio é igualmente sustentável...

    Isto assumindo, claro, que poderemos sempre continuar a crescer para manter um stock de dívida crescente na mesma razão do PIB, coisa que nem sequer sabemos se é desejável do ponto de vista ecológico.

    O crescimento económico tem-se desligado do crescimento do consumo energético nos países ocidentais mas como o seu colega João Rodrigues bem notava recentemente (depois de se ter convertido à noção de sustentabilidade ambiental, parece-me), a pergunta que se coloca é se este crescimento do consumo de energia não foi simplesmente terceirizado para o Extremo-Oriente...

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  4. Muito saudável recentrar nas questões económicas.

    Saudável também que se expliquem os mecanismos ínvios que a comissão usa para encerrar as economias dos países periféricos num colete de forças fiscal.

    Por trás deste exemplo de uma má economia da comissão, que não resiste à análise de qualquer académico esclarecido, esconde-se a velha relação de poder entre estados devedores e estados credores, com estes últimos a tentarem mais uma vez impedir o crescimento e por conseguinte eternizar a situação de dependência e subalternização dos primeiros.

    Isto corresponde a uma velha táctica alemã de utilizar esquemas burocráticos para favorecer as suas políticas mercantilistas. É o chamado imperialista envergonhado.

    Nada de novo, portanto. O regime neocolonial deflacionista germânico está para lavar e durar até estoirar.

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  5. O saldo orçamental é um dos gambosinos do "Tratado" Orçamental.

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  6. E na Grécia... 26 anos até "recuperar" diz o FMI, muito acima do exagerado cenário do Grexit. Isto é que é responsabilidade!

    @Jaime

    Fica a pergunta sem resposta, porque ninguém descobriu a pólvora, só que o NAIRU não acerta uma, 40+ anos depois. Aliás, à muito nem se disfarça, como refere bem o Abreu, inflação é coisa que nem no Japão existe.
    A preocupação ambiental seria enternecedora, não fosse a tal conversão energética ser praticamente dependente de investimento dos estados. Numa coisa concordamos, de preferência sem dívida, só que enquanto achar que a emissão desta serve para alguma coisa, só lhe resta remover o contador.

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  7. @ Jaime Santos

    "Não percebo, Alexandre Abreu, o método de cálculo do PIB potencial pode estar errado, mas o conceito de que o PIB real pode estar acima de um valor médio parece-me do mais puro bom-senso, dada a existência de um ciclo económico."

    Imagine o Jaime Santos por um momento tem 70 anos, e que vai ao oftalmologista porque esta a ver mal do olho esquerdo, a sua visao nesse olho esta um pouco enevoada.
    O oftalmologista informa-o de que tem uma catarata no seu olho esquero que necessita de cirurgia.
    O Jaime Santos prefere que o medico faca este diagnostico e prescreva o tratamento com base num exame ao seu olho esquerdo ou ao seu anus?
    Repare que em ambos os casos, e parafraseado-o "o conceito da possibilidade de uma real catarata no olho esquerdo e do mais puro bom-senso, dada a sua idade e sintomatologia".

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  8. Não é a regra para o cálculo do PIB potencial, através do cálculo fazendo uso da taxa de desemprego via alisamento temporal, clara e igual para todos os estados-membros? Muito gosta o português de se queixar!

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  9. Pode ser que "a regra para o cálculo do PIB potencial, através do cálculo fazendo uso da taxa de desemprego via alisamento temporal" seja igual para todos, mas o que para uns é veneno para outros é uma iguaria.
    E há regras que "por coincidência" prejudicam sempre os mesmos e beneficiam sempre outros.

    O Ferreira, como vendido que é está sempre a puxar a brasa à sardinha dos agiotas.

    É como as taxas de juro numa zona monetária não optima. O que para uns é demasiado restritivo para outros é demasiado expansivo.

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  10. É igual para todos os estados membros, mas afecta mais uns do que outros, tanto porque serão eternamente deficitários (em boa e má companhia) como por o remédio ser destruir a economia.
    A pergunta que fica, sr Ferreira, se há 20 anos nenhuma das previsões bate remotamente certa, bem como nenhuma das "sugestões", porque é que é responsável continuar a fazer o mesmo com a destruição da vida das pessoas que isso tem implicado?

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  11. É relevante lembrar que houve um ano, e apenas um ano, em que o desemprego estrutural espanhol era perto de 20%. Como é que um disparate desse valor é levado a sério é para rir, para nem falar no "estrutural".

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  12. Os "erros" das previsões do PIB potencial da comissão têm a marca indelével do favorecimento do ordoliberalismo mercantilista alemão. Não é defeito, é feitio.

    Tal como os "erros" de Alesinas, Reinharts, Rogoffs e quejandos são muito úteis como instrumentos de dominação financeira. E a prova é que as políticas neles baseadas se mantêm, mesmo quando as suas teorias foram desmascaradas e comprovadas como falsas.

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  13. Não há dúvida que trolls como o "José", o "Pimentel Ferreira" e o "Jaime Santos", apesar dos correctivos que têm levado, marcam pontos num aspecto:

    Extremam as posições de tal forma que parece que não existe nada entre o seu direitismo sabujo e os puros e duros comunistas. Embora pífia é uma vitória para eles porque de caminho silenciam opiniões moderadas e bloqueiam as gentes de esquerda numa linguagem e em teses estereotipadas que afastam o cidadão lambda.

    Estranhamente parece que só comunistas têm brio em contra-argumentar as imbecilidades de um Pimentel Ferreira, e mesmo assim tantas vezes fazem-no apenas do ponto de vista estritamente político e nunca sob o ponto de vista de uma ou mais das várias correntes da economia política.

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  14. A larga maioria das aleivosias dos trolls neo/ordo/qualquercoisa-liberais-salazarentos é perfeitamente refutável usando boas e comprovadas teorias macroeconómicas que são subscritas por gentes de quase todos os quadrantes ideológicos.

    Isto quer dizer que refutações feitas nessa base serão como um antibiótico de largo espectro, sendo compreendidas e aceites por largas fatias de público.

    Responder às trollices e tolices de Jaimes, Josés e Pimentéis com um ponto de vista "de esquerda" de pendor político e ideológicamente vincado é conceder-lhes um espaço de manobra que eles não merecem.

    Por muito tentador que seja usar tais ocasiões para fazer proselitismo político "progressista", tácticamente é um erro porque restringe o espectro de público que se identificará com as respostas.

    Caramba! Vejam lá se é preciso ensinar-lhes o caminho das pedrinhas! :)

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  15. Para saber mais sobre o assunto do post são úteis dois artigos do Brave New Europe:

    https://braveneweurope.com/carlo-clericetti-robin-against-the-output-gap

    https://braveneweurope.com/carlo-clericetti-italy-reform-of-the-state-saving-fund-stop-that-monster

    É sobretudo interessante ver como os alemães abrem a porta a que o ESM possa servir não só para estados mas também para bancos.

    E aí vem-nos à ideia o estado deplorável em que se encontram os gigantes bancários alemães, Comerz e Deutsche. E percebe-se a jogada: Pôr os dois bancos alemães a mamar financeiramente na teta do fundo do ESM, pago por todos os cidadãos europeus, para fugirem à falência.

    https://www.zerohedge.com/markets/deutsche-bank-death-watch-has-taken-very-interesting-turn

    Compreendem?

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