Morreu uma das personagens míticas do filme Blade Runner (1982), de Ridley Scott, inspirado no livro de Philip K. Dick Será que os andróides sonham com ovelhas eléctricas? (1968).
Apesar de achar que todos já viram o filme, não vou contar a sua história. É possível dizer que trata da angústia e do medo dos escravos ao viverem todos os dias sob o terror do seu tempo finito, de serem algo que não viveram, de viverem algo que lhes foi imposto como seu, até ao último dia das suas vidas. No fundo, algo muito de humano.
A última deixa do personagem no filme é premonitória de todos nós:
"Eu vi coisas em que vocês pessoas nunca acreditariam. Naves de ataque em chamas no ombro de Orion. Vi raios C brilharem no escuro perto das Portas de Tannhauser. Todos esses momentos ficarão perdidos no tempo, como lágrimas na chuva. Tempo de morrer".A revolta violenta que levam a cabo, em nada se assemelha à violência que lhes foi imposta, com essa espada sob as suas vidas. Assim um pouco como aquele poema de Bertold Brecht, glosado à exaustão no livro Violência de Slavoj Zizek.
A única fuga desse fim é dada por um estranho amor entre dois mundos aparentemente intocáveis, unificados quando um deixa de ser a peça do sistema repressivo do pensamento e o outro decide aceitar as emoções. No fundo, ambos deixam-se levar nas emoções. Fogem do sistema para viver o tempo que lhes resta, deixando como rasto perdido um unicórnio de prata. Uma utopia?
E isso fez-me pensar em muitas coisas.
Mas como aqui se escreve sobretudo sobre economia, fez-me pensar nesta maldição da economia portuguesa em que os seus habitantes parecem condenados a ter de viver em baixa condição porque, no dia em que pensam que podem finalmente viver - investindo e consumindo e arejando a sua vida - assistem à subida do défice externo que os arrasta de novo para a derrota do afundamento na depressão.
É assim devido a um tipo de especialização produtiva e a um enquadramento institucional económico-cambial que o impede de deixar de ter uma das maiores dívidas externas internacionais que, nada se fazendo, reproduz e agrava esse condicionamento. E quem fala em dívida, fala em dependência. Em escravos.
Esta maldição precisa de ter uma resposta que não passe pela austeridade. Porque a austeridade é a depressão, o desemprego e a reprodução da pobreza. E é a forma de transferir rendimento dos cidadãos pobres, pobres trabalhadores, para quem pode e sabe viver da livre circulação de capitais.
Tempo de morrer. Ou de voltar a viver.
Belo texto João Ramos de Almeida
ResponderEliminarDe facto um belíssimo texto.
ResponderEliminarE como diz Kodak Khrome uma sensível e preciosa ponte que também o João faz entre dois universos
« deixar de ter uma das maiores dívidas externas internacionais» pela golpada cambial é sonho de andróides, que sempre se distanciam dos humanos que com imaginação e esforço são «quem pode e sabe viver da livre circulação de capitais»
ResponderEliminarO João Ramos de Almeida presta um péssimo serviço à memória de Hauer ao aproveitar-se do seu monólogo para fazer política.
ResponderEliminarE esquece-se de um pequeno pormenor, que Hauer evoca (e que o seu desaparecimento infelizmente confirma): a morte do indivíduo, quando ocorre, é mesmo para sempre... Não há cá sobrevivências coletivas que nos salvem desse simples facto, por mais que os O'Briens desta vida nos tentem convencer do contrário...
O filme, e a mensagem, são bem mais profundos e vão muito mais além de qualquer analogia com questões económicas. Se falasses em criar algo de novo, onde a existência e a percepção da realidade fossem verdadeiras. Uma sociedade baseada no conhecimento em vez de tentar salvar esta treta, este algo que não vale a pena. Aí, sim ... aí já te ouvia.
ResponderEliminarEntre Ficção e Economia só temos de ter Fê-"In god we trust"...
ResponderEliminarExcelente analogia.
Caro José
ResponderEliminarNinguém falou em resolver a dívida por "goleada cambial"... Acho que deve ser da preguiça balneária. Já só diz o que lhe parece que é a cassete, acabando por assumir a sua própria cassete
Caro Jaime,
Sabe que em arte não há cá propriedades: as pessoas apropriam-se da realidade e usam-na a seu bel-prazer. É a condição da liberdade artística.
E depois o Jaime parece cair no mesmo erro do leitor José: ninguém falou em ressuscitar da morte, mas de voltar a viver, porque se caminha para uma morte lenta de escravo. Se não é essa a realidade, dir-me-á como - na sua opinião - se resolve este nosso problema colectivo de não se conseguir sair deste círculo vicioso de recuperação-défice externo.
Caro Marco,
Ele há coisas que podem melhorar antes de piorar de vez. A bem da população. E há coisas que se podem salvar na passagem deste mundo para outro que "valha a pena".
Parece que a posta causou crispação a quem se sentiu atingido nos seus objectivos político-ideológicos
ResponderEliminarDe jose nem vale a pena falar. Está em modo zombie, a pregar as virtudes da livre circulação de capitais. Dos mercados uberalles, mais o seu cotejo de banqueiros terratenentes com sangue tão azul como putrefacto?
De Jaime Santos ressalta aquele toque de horror pelo facto de JRA ousar "fazer política". Ele, JS, que se farta de a fazer, expressa-se agora desta forma, que se assemelha tanto aos demagogos que tentam minar os alicerces da democracia.
Um belo exemplo, não haja dúvida
Caro João
ResponderEliminarPondo de lado a «golpada cambial» 'voltar a viver' pressupõe um cenário passado que se tome por referência.
Estranhamente esse cenário não raramente aparece descrito como aquele que nos trouxe até aqui, ou é posto numa qualquer utopia para a qual não se conhece caminho.
Postos os olhos em horizontes mais largos, temporal e geograficamente, sempre encontramos cenários que só as palavras hoje exorcizadas traduzem: esforço-produtividade; acumulação de capital-investimento.
Más notícias por certo para quem vê na redistribuição/consumo o papel do Estado, ainda que de orçamento equilibrado (?).
As possibilidades de interpretação do simbolismo de Blade Runner vão muito mais além do que nos apresenta quer o autor do post quer Jaime Santos.
ResponderEliminarDigo isto sem menosprezo pelas crenças filosóficas ou religiosas de cada um.
A realidade, e por maioria de razão uma obra com um conteúdo subjectivo como este filme, não tem uma interpretação unívoca. E o nível de interpretação depende das capacidades intelectuais mas também e sobretudo anímicas e espirituais de quem o percepciona.
Também no domínio da subjectividade é válido o aforismo: "Quando a única ferramenta que temos é um martelo tudo nos parece ser um prego".
Não quero com isto dizer que uma interpretação é correcta e a outra não, ou que a minha é melhor que a doutros. Apenas afirmo que há horizontes mais vastos e reflexões mais profundas.
Quem quiser que use estas minhas palavras como portal para se interrogar sobre a natureza da mente, o significado da morte e a relação entre a consciência e as diversas "matérias" e "planos". Pequeno exemplo: Sabiam que uma ideia é feita de "matéria"?
Quem quiser entender que entenda.
Bon voyage!
S.T.
" sempre encontramos cenários que só as palavras hoje exorcizadas traduzem: blablabla e acumulação de capital"
ResponderEliminar"encontramos"?
Este plural majestático é exactamente o quê? Ou este josé já fala em nome dos banqueiros terratenentes e dos donos de Portugal a que tão ternamente dedicou tantas odes e tantos comentários babosos?
Más notícias por certo a quem vê na vampiragem o direito do mais forte à liberdade e que olha para o Estado como uma entidade que putativamente pode limitar a acumulação de Capital por parte do Capital.
Para esta gente o Estado só mesmo para mandar matar e morrer em África,para perdoar dívidas fiscais, para roubar salários e pensões e para servir de almofada confortável a esse mesmo Capital