terça-feira, 30 de abril de 2019
Manifesto em defesa do Estado social
A sociedade portuguesa observou nos últimos meses um ataque sem precedentes ao Serviço Nacional de Saúde. Através de uma actuação concertada, ao jeito de um cartel, os grandes grupos empresariais do mercado da saúde lançaram um ultimato que, em última instância, visou intimidar o Governo no momento em que preparava uma proposta de revisão da Lei de Bases da Saúde. Mais recentemente, a comunicação social fez a promoção em grande escala de um estudo que, vestindo roupagem científica, garante a insustentabilidade do nosso sistema de segurança social. Não devemos estranhar esta campanha que, como sabemos, já dura há alguns anos. A segurança social, garantida pela solidariedade entre gerações, é um espinho cravado na ideologia e nos interesses dos que lucram com a financeirização das sociedades.
Importa lembrar que o Estado social germinou a partir das lutas operárias, e da mobilização de cidadãos preocupados com a justiça social, ao longo do século XIX. Contudo, só no século XX, após a Segunda Grande Guerra, é que se instituiu na Europa um sistema articulado de direitos e deveres baseado no princípio da solidariedade. O acidente de trabalho e o desemprego são encarados como eventos que resultam do funcionamento da empresa e da economia, implicando por isso uma responsabilidade social que exige a mutualização dos riscos. A perda do rendimento na doença e na velhice já não sujeita o cidadão à arbitrariedade do assistencialismo, antes confere o direito a um rendimento que proporciona segurança. Progressivamente, e de acordo com a evolução de cada país, foi-se instituindo um Estado social guiado pelo seguinte princípio: é responsabilidade do Estado promover o desenvolvimento do bem-estar dos cidadãos. Em concreto, o Estado social organizou-se em quatro pilares: direito do trabalho, segurança social, serviços públicos universais, promoção do pleno emprego. Em sociedades capitalistas e democráticas, onde a igualdade no voto contraria a desigualdade do poder do dinheiro, o Estado social retirou ao mercado uma parte significativa da provisão social e, dessa forma, melhorou consideravelmente o poder negocial do trabalho. O Estado social constituiu um notável avanço em direcção a uma sociedade mais justa.
A ideologia neoliberal, e os interesses que a promoveram a partir dos anos setenta do século XX, fizeram do Estado social o alvo da sua guerra política. Nas últimas quatro décadas, pese embora a resistência de sindicatos e movimentos cívicos, o Estado social foi sujeito a uma sistemática degradação e reconfiguração. A globalização comercial e financeira, instituída pela grande coligação política centrista, generalizou o princípio da concorrência como princípio organizador das sociedades, substituindo o princípio da solidariedade que informou o Estado social. Na Europa, desde o Acto Único que a legislação comunitária fez da concorrência livre e sem distorções o princípio normativo que inspira e justifica as políticas de reconfiguração do Estado social. Assim, promovem-se reformas do direito do trabalho que tornem o seu mercado competitivo, quer dizer, flexível. Promovem-se também reformas da segurança social que favorecem os mercados de saúde e de pensões, e introduzem-se nos serviços públicos normas jurídicas e métodos de gestão que mimetizam a gestão empresarial. Através da compressão da política orçamental, sugere-se aos governos que, num grande investimento, a renda anual de uma parceria com entidades financeiras é mais conveniente do que o pagamento à cabeça da totalidade da despesa. Sempre que politicamente viável, a reconfiguração do Estado social procura transformar direitos sociais em direitos mínimos sujeitos a condição de recursos. Ao mesmo tempo, a fuga ao imposto pelas classes mais abastadas e as grandes empresas foi consagrada como direito à concorrência fiscal, até agora intocável no quadro da livre circulação de capitais. O novo enquadramento institucional tornou impraticáveis as políticas de promoção do pleno emprego, aliás entendidas agora pelos economistas do pensamento neoliberal como ineficazes, ou mesmo perversas. Entretanto, accionistas, administradores e altos quadros do sector financeiro e dos grupos empresariais mais influentes foram construindo um sistema remuneratório obsceno, concebido segundo princípios de planeamento fiscal, aliás imune aos resultados da gestão. A desigualdade na distribuição do rendimento e da riqueza cresceu de mãos dadas com a erosão e a reconfiguração do Estado social.
Lembrando Salgueiro Maia, 45 anos depois do 25 de Abril é este o Estado a que chegámos. Ainda assim, estamos gratos aos capitães de Abril por terem arriscado as suas vidas para nos darem a oportunidade de construir uma democracia que, no Artigo 1º da sua Constituição, afirma: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.” Hoje, é tempo de revisitarmos a letra e o espírito da nossa Constituição porque, com décadas de atraso, também ela tem a marca do pensamento político do pós-Guerra que constitucionalizou o Estado social em vários países europeus. Devemos ter presente que, em Portugal, o direito ao trabalho é um direito constitucional e que “incumbe ao Estado promover: a) A execução de políticas de pleno emprego; ...” (Artigo 58º). Devemos ter presente que “Todos têm direito à segurança social” (Artigo 63º, nº1). Devemos ter presente que “Todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover.” (Artigo 64º, nº1). Devemos ter presente que “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade e a privacidade familiar.” (Artigo 65º, nº1).
O desencanto que pressentimos com o estado da nossa democracia, talvez mesmo raiva surda em alguns sectores da sociedade portuguesa, é em grande parte o resultado da progressiva erosão do Estado social através de políticas que negaram a substância dos direitos consagrados na Constituição da República Portuguesa. A recente evolução política na Europa confirma o aviso de muitos cientistas sociais: sem um robusto Estado social a democracia fica em perigo. Por isso, nos 45 anos do 25 de Abril, justifica-se um apelo à mobilização dos portugueses para que, comungando da sede de justiça social que animou os capitães de Abril, se organizem num movimento de grande alcance com um único objectivo: reverter a erosão do Estado social e promover o seu desenvolvimento em resposta aos desafios do século XXI.
APOIADO! Defendam o SNS. Se as esquerdas não o fizerem, quem o fará? Subscrevo inteiramente! Foi para isto que o povo votou nos partidos de esquerda, não para agora o Governo fraquejar e fazer o jogo sujo da direita!! Que o Governo não se atreva porque as primeiras eleições do ano estão aí!!
ResponderEliminarMuito mais que a ideologia neoliberal, nada desmascara tanto a hipocrisia das várias direitas que o Estado Social. Escondendo-se atrás de uma capa de valores que qualquer um subscreve, senão todos, pelo menos a grande maioria, a verdadeira ideia económica por trás das várias direitas foi sempre a selva financeira. Em Portugal nomeadamente no concerne ao ataque ao SNS ou aos fundos de pensões a que temos assistido. Ou seja, não demoraria uma geração até que voltássemos a ter um povo descalço. Sempre com muita misericórdia por parte dos mais abastados claro.
ResponderEliminarCurioso. Este tipo Vitor não era o tipo que aclamava com ambas as mãos as PPP? É que defendia os negócios pouco claros da Fertagus?
EliminarE agora o Vitor debita estas inanidades?
EliminarParece quem?
Um excelente texto. Parabéns. Espero que não seja torpedeado por quem faz do combate ao Estado Social o seu quotidiano nas caixas de comentários
ResponderEliminarBelo texto, espero que se transforme em acção!
ResponderEliminarDe facto, mais do que ser pró ou contra a UE, preservar o estado social deve ser a verdadeira luta.
ResponderEliminarCurioso.
ResponderEliminarUm Pedro a confirmar o que o mesmo Pedro disse
Mas é bom que esta gente tenha que se apresentar como defensora do Estado Social, nem que seja para se infiltrar no que se debate. Significa que sabem que tal atitude de defesa do mesmo estado pode congregar muita gente
Só lhes resta estas manobras para defenderem cobardemente esta UE, predadora do estado social