O governo alemão apresentou recentemente a Estratégia Nacional para a Indústria 2030. Entre outras medidas, pretende criar um fundo público para assumir o controlo de empresas do setor industrial, em “circunstâncias excecionais” e “por um período limitado de tempo”, procurando garantir a sua capacidade para competir com empresas estrangeiras. Esta estratégia de nacionalizações parciais seria justificada em “casos muito importantes”.
A preocupação com a capacidade competitiva da indústria europeia esteve também na base do megaprojeto de fusão das empresas ferroviárias Siemens (multinacional alemã) e Alstom (francesa), anunciado em 2017 com o objetivo de criar um gigante europeu na ferrovia, capaz de concorrer com a chinesa CRRC e a canadiana Bombardier. O projeto foi agora chumbado pela Direção Geral da Concorrência da Comissão Europeia, sob o argumento de que “as outras empresas [europeias] não iriam conseguir acompanhar a concorrência criada pela fusão”.
As reações não tardaram: Joe Kaeser, presidente executivo da Siemens que já apelidara os técnicos da Comissão de “tecnocratas retrógrados”, apressou-se a pedir uma “reestruturação urgente” da política industrial europeia, à semelhança de Peter Altmaier, ministro da Economia alemão. Também o ministro das Finanças francês, Bruno Le Maire, considerou "obsoletas" as regras europeias e criticou o "erro político” da Comissão. Já o The Economist condenou as intenções dos políticos europeus e defendeu que estas deveriam fazer “soar os alarmes” da ortodoxia, o que, de resto, teve eco na opinião dos seus representantes por cá.
Na verdade, tanto o plano de investimento público anunciado pelo governo alemão como o projeto de fusão contrariam a ortodoxia económica, inscrita no funcionamento da União Europeia, segundo a qual o desenvolvimento dos países apenas é possível se adotarem medidas como a privatização de empresas públicas, a promoção da iniciativa privada e da concorrência (combatendo os monopólios), a liberalização do comércio internacional, entre outras. O sucesso dos países deve-se, segundo esta linha de raciocínio neoliberal, à sua integração na economia internacional, sem interferências do Estado. É esse o esquema teórico que sustenta as regras da concorrência da União Europeia, desenhadas de forma a promover a livre iniciativa privada e impedir qualquer forma de intervenção dos Estados em empresas naconais.
No entanto, estas regras são erradas e as ideias em que assentam são fundamentalmente falsas. Como já foi descrito no livro Bad Samaritans, escrito pelo economista sul-coreano Ha-Joon Chang e resumido de forma brilhante aqui, a história mostra-nos que todas as grandes potências mundiais recorreram a formas de protecionismo e intervenção estatal de forma a desenvolver a sua indústria e capacidade produtiva antes da abertura ao comércio externo. Foi esse o caso do império britânico na construção do seu domínio industrial no início do século XIX, através de subsídios à produção nacional ou de tarifas aduaneiras, antes da revogação das Corn Laws (impostos alfandegários que protegiam os cereais britânicos da concorrência estrangeira) em 1846.
A imposição do comércio livre aos países mais fracos foi acompanhada da implementação de tarifas aduaneiras, subsídios à produção e apoios públicos à inovação em países como a Alemanha e os EUA, que conseguiram desenvolver a sua indústria e ultrapassar o poderio do Reino Unido, tornando-se líderes tecnológicos. Esta estratégia de desenvolvimento foi seguida também pelo Japão e, mais recentemente, por vários países asiáticos – Coreia do Sul, Taiwan, Índia ou China – cujas medidas de proteção aduaneira, investimento público robusto, apoios estatais às empresas e controlo público do setor financeiro e dos movimentos de capitais têm permitido sustentar o seu desenvolvimento industrial.
Percebe-se, por isso, o empenho de Peter Altmaier em alterar a política industrial do país e promover o seu desenvolvimento tecnológico e produtivo através do apoio do Estado, sobretudo numa altura em que aumentam os receios de desaceleração do crescimento alemão.
No entanto, esta decisão do governo alemão contraria toda a orientação da União Europeia ao longo dos anos, cuja obsessão com as regras da concorrência ordoliberais levou a que impusesse severos limites ao intervencionismo público na economia, impedindo a prossecução de políticas industriais ativas pelos Estados-membro e beneficiando apenas as empresas que já eram fortes à partida.
Um plano de investimentos alemão que beneficie apenas os seus interesses é politicamente insustentável, pelo que este teria de ser pensado a nível comunitário. No entanto, uma viragem radical da política industrial europeia parece muito pouco provável, devido à resistência da ortodoxia nas instituições (reveladora de um projeto europeu visivelmente desorientado). Além disso, uma década de austeridade enfraqueceu substancialmente as condições para o desenvolvimento europeu. Os riscos serão suficientes para que a UE mude de rumo?
Exacto. "...(reveladora de um projeto europeu visivelmente desorientado)...".
ResponderEliminarO projecto europeu está ainda na fase de um projecto em curso para uma, mais ou menos plausível, União Europeia.
Como aplicar regras de ou protecionismo ou liberalismo a um todo ainda não existente ?.
O que transparece é apenas uma burocracia subserviente e ao serviço dos interesses do mais poderoso dos elementos. Óbvio.
Primeiro defina-se e organise-se o todo. Depois ...
Que remédio. Só os burros não mudam de ideias.
ResponderEliminarNão é só em Portugal que a China vem às compras.
ResponderEliminarUma vez mais a UE procura resolver os seus interesses (e da sua classe), e neste caso do imperialismos alemão e dos seus capitalistas!
ResponderEliminarPerguntar-se-ia ao governo do PS do António Costa, apoiado pelas suas muletas o que é que têm a dizer sobre esta estratégia politica e económica da chamada UE? NADA?!
Por outro lado, e não fugindo muito ao assunto: O que fizeram às "nossas empresas", que produziam este tipo de materiais?
E onde andavam os senhores do PC do Barreirinhas Cunhal e do PS do Mário Soares da UDP do Tomé, hoje BE!? Já não vou falar na INTERSINDICAL, nem na UGT, por que a maioria dessa gente(para não dizer outro nome) traíram ao longo dos anos os operários e demais trabalhadores. Se tem duvidas, vejam como esta o movimento sindical: Os Sindicatos as Comissões de Trabalhadores e delegados sindicais.. é só contar pelos dedos!!! Como podem observar no meu comentário, não vou perder o meu precioso tempo em falar no PPD/PSD Cavaco/Santa Lopes/Barroso, nem tão pouco no CDS/PP Portas/Cristas porque essa gente nunca se preocupou como o País e muito menos comos os operários e de mais trabalhadores, visto pertenceram na sua maioria a uma classe de exploradores...
A tectónica política mundial está a sofrer grandes convulsões como resultado de fenómenos, uns mais recentes como a eleição de Trump e outros mais longínquos mas prenhes de resultados no presente.
ResponderEliminarEntre os acontecimentos mais longínquos eu situaria dois gambitos falhados da diplomacia dos USA. O primeiro traduziu-se na travagem da desagregação da Rússia e o seu renascimento politico-militar. O segundo foi a integração da China na OMC que era suposto redundar na sua democratização e afinal o PC chinês conseguiu o feito de modernizar o país mas preservando-o de interferências políticas ocidentais.
A estratégia chinesa tem-se traduzido em aquisições de empresas de alta tecnologia visando deitar mão essencialmente à propriedade intelectual e know-how tecnológico. Para os chineses faz sentido porque já têm base tecnológica e formação cientifica que lhes permite absorver e integrar esses conhecimentos sem terem que investir tanto em pesquisa.
Trump, que me lembre, foi o primeiro (desta vez) a tomar medidas protectoras instado por conselheiros como Peter Navarro. Curiosamente o caso assemelha-se à fase final da URSS em que Reagan chegou à brilhante conclusão que os USA estavam a competir consigo próprios no despique com a URSS porque esta espiava muito eficazmente as indústrias militares e tecnológicas americanas.
Toda a presente guerra comercial deve ser vista muito mais no prisma do domínio tecnológico e militar de longo prazo. A Alemanha e a França acordaram com o sururu que Trump levantou.
Curiosamente a França tem serviços de protecção contra espionagem industrial e guerra económica bem organizados, mas aparentemente o poder político não fazia o devido uso desses dados.
As movimentações alemãs vão no mesmo sentido. Não se trata portanto de nacionalizar empresas, nem a CDU-SPD se converteram ao marxismo, mas trata-se de blindar o tecido empresarial alemão contra aquisições "indesejadas".
E voltamos à lógica dos blocos, com os USA a usarem descaradamente o ser poder por meio de sanções à esquerda e à direita, obrigando os aliados e parceiros comerciais a contorcionismos e acrobacias para se aguentarem no balanço. É assim em relação ao Irão, mas também em relação à Russia e à China.
A Alemanha teve que invocar e defender firmemente os seus interesses energéticos sob a forma do gasoduto Northstream2 contra os propósitos estratégicos dos USA que pretendiam a todo o custo isolar a Rússia, mesmo que isso prejudicasse gravemente a sua antiga aliada.
Portanto é natural que se veja uma certa desorientação porque se entrechocam vários imperativos e se assiste a uma mudança importante de paradigma no que concerne ao comércio mundial e à globalização.
S.T.
E claro, quero deixar o meu aplauso ao Vicente Ferreira que nos trás mais um texto interessante e bem fundamentado.
ResponderEliminarNoto também uma tendência para aparecerem cada vez mais comentadores com conhecimento de causa, o que melhora a qualidade geral. Esperemos.
S.T.
"Como podem observar no meu comentário, não vou perder o meu precioso tempo em falar no PPD/PSD Cavaco/Santa Lopes/Barroso..."
ResponderEliminarClaro que não. O Sr Aires prefere falar no que nos idos tempos de 75 também falavam aqueles trastes do MRPP. A direita sempre teve a mão untada por estes indivíduos. O coitado do Garcia Pereira já recebeu a paga por não obedecer incondicionalmente a um tal de Arnaldo Matos. O Sr Aires retoma apenas os tiques dos tempos do Barroso de outrora
Em todo o caso faço notar um detalhe a respeito destas medidas de protecção contra aquisições indesejadas: É que são tomadas por um estado, sem qualquer consulta das instituições comunitárias numa lógica de defesa dos seus interesses directos. E o mesmo estado não se coíbe de desenvolver lógicas predadoras no próprio seio da EU. Os "sócios" da EU que se danem! LOL
ResponderEliminarQuando é que os lorpas europeístas tugas abrem a pestana?
Outra questão são os "ruídos" que se ouvem sobre um suposto futuro investimento alemão em pesquisa. Primeiro porque já vem tarde. E segundo porque os números avançados são ainda ridiculamente pequenos.
S.T.
Aproveito para introduzir aqui a bucha de uma publicação que mereceria ser tratada ao nível de um post dedicado. Por isso aqui fica só o desafio e o link:
ResponderEliminarhttp://bostonreview.net/class-inequality/suresh-naidu-dani-rodrik-gabriel-zucman-economics-after-neoliberalism
S.T.
Este é o site do colectivo de economistas referido:
ResponderEliminarhttps://econfip.org/#
Com pdfs para as contribuições de cada um deles.
S.T.
Caro S.T., agradeço novamente as interessantes sugestões de leitura.
ResponderEliminarPena o ST não recomendar David Ricardo ou Adam Smith, que nos demonstram que o protecionismo a longo prazo é sempre prejudicial para ambas as partes. A esquerda sempre teve um fascínio pelo aforismo salazarista do "orgulhamente sós".
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