quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

1979: Quando Marcelo se marimbava para o SNS

Deu brado, a intenção de Marcelo Rebelo de Sousa (MRS) de que vetaria uma Lei de Bases da Saúde, mesmo sem a ler, se fosse apenas votada à esquerda.

Esta estapafúrdia declaração vinda de um professor universitário - que  visa abortar o projecto de revisão à esquerda - apenas espantará quem acha que MRS é uma pessoa preocupada com a substância dos problemas. Mas para ele, a saúde dos portugueses é um pormenor; o que é essencial é saber quem ganha no jogo esquerda-direita (a direita, na sua opinião, deve ganhar). Aliás, numa recente entrevista à agência Lusa, MRS separou os "mundos" existentes no actual debate sobre a Lei de Bases a partir de uma ideia igualmente simplista e redutora. Disse ele:
Há “duas maneiras de ver o problema” no SNS: com “flexibilidade na forma como é gerido” ou de “maneira mais fixista”.

Pode parecer chocante, mas esta visão curta dos problemas não é de agora, nem é novidade em MRS. Há cerca de 40 anos, em 1979, quando o SNS foi aprovado no Parlamento como forma de dar mais saúde aos portugueses, MRS era subdirector do principal jornal nacional (Expresso). E, mais uma vez, o assunto passou-lhe ao lado.

Folheie-se o jornal dessa altura. A página 2 do semanário era sempre sua, para estender a sua "Análise Política". Na página 3, aparecia sempre a "Figura da Semana", escolhida geralmente por MRS.

Ao longo de 1979, MRS não gastou uma linha - uma que fosse! - sobre o SNS ou a saúde dos portugueses. O próprio corpo do jornal nunca abordou o assunto, à excepção da crónica parlamentar, que não era da sua autoria. E muitas das vezes o SNS foi completamente secundarizado face a outros assuntos.

E se não foi sobre a saúde, sobre o que escreveu MRS nesse primeiro semestre preparatório da votação no Parlamento do SNS?

Escreveu sobre a descolonização, o PCP, o PSD, o Governo de Mota Pinto, a crise política, os candidatos presidenciais, a descolonização (outra vez!), o regresso de António Champalimaud, a Europa, o PS, o Brasil, novamente o Brasil (Marcelo deve ter ido ao Brasil e refere-se à chamada revolução de 1964 sem nunca mencionar o golpe militar), o congresso do PS (omitindo António Arnaut, que protagonizou - segundo o repórter do próprio jornal - a segunda intervenção mais ovacionada!), os três anos da Constituição, a crise da direita (dividida e com MRS a forçar uma concertação de esforços), a crise da direita nas confederações patronais e na UGT ("a CAP atravessa crise visível e parece paralisada, dividida; a UGT ressente-se da divisão no PSD, atrofia-se à nascença; a CIP permanece em debate constante das suas diversas correntes"), a amnistia aos militares do 11 de Março e do 25 de Novembro, o discurso de Ramalho Eanes no 25 de Abril, as jogadas de Sá Carneiro, a crise entre Sá Carneiro e Eanes, a "frente eleitoral" (escolhendo Freitas do Amaral para figura da semana).

Na semana de Junho em que os deputados votaram o SNS, Marcelo escreveu sobre... o 13 de Maio em Fátima. "A Igreja Católica é uma força social indesmentível, (...) resta saber se tem consciência da situação actual do repto que se encontra lançado". Não lembra ao diabo.

Em Julho, com a criação da Aliança Democrática (entre PSD/CDS/PPM), MRS parece feliz: "Este acordo pode ajudar a clarificar as opções eleitorais dos portugueses (...) nada mais frustrante para o eleitorado do que concluir que o seu voto não escolhe o Governo. (...) Se o bloco não se desunir, a maioria governamental pós-eleitoral será provavelmente diferente da actual".

Mas a questão da Saúde em Portugal era então assim tão irrelevante? Visivelmente para MRS, sim. Mas para os portugueses, era crucial. Era mesmo um caso de vida ou de morte. Em cada dia.

Veja-se como.


MRS podia, como fez António Arnaut ou o deputado da UDP Acácio Barreiros no debate sobre o SNS (17/5/1979) - que se aconselha ler na íntegra! - alinhar os sinais do descalabro: Taxa de mortalidade infantil, 35 por 1000 nados-vivos; Partos sem assistência -15%; Taxa de mortalidade por doenças infecto-contagiosas, parasitárias e entéricas - 22 por 100000; Casas sem esgoto - 40 %; População com abastecimento de água através de poços - 32%; População sem recolha de lixos urbanos - 61 %; Médicos de clínica geral - 92,5 % no litoral do País, contra 7,5 % no interior; Médicos especialistas - 93,7 % na região litoral (81 % só em Lisboa, Porto e Coimbra), contra 6,3 % no interior; Enfermeiros - 83,8 % no litoral e 16,2 % no resto do País; Consumo de medicamentos (1976) - 80% para o litoral e 20 % para o interior.

MRS podia ter se ofendido e cruzado armas com António Arnaut quando, nessa sessão do Parlamento, citou o panorama desgraçado do povo português e a indiferença dos privilegiados:
É esta pungente realidade que os inimigos do SNS fingem ignorar, por cobardia moral e indiferença política. Todo os dias os jornais se fazem eco de casos dramáticos, verdadeiramente intoleráveis numa sociedade civilizada e inadmissíveis para qualquer pessoa minimamente sensível ao sofrimento alheio.
MRS que lia jornais por dever de ofício, podia - tal como hoje - pensar antes na vida dos outros. Ser "minimamente sensível ao sofrimento alheio". Podia ter se lembrado do que vira, dias antes, ao ouvir Arnaut citar notícias atrás de notícias:
Pessoas que morrem par falta de recursos ou de assistência médica, outras que aguardam meses por um exame ou uma cama no hospital. Há casos insólitos de o aviso para a consulta ou internamento chegar depois do falecimento do doente! Ainda recentemente a imprensa relatou um caso de uma mulher de Fornos de Algodres - o próprio presidente da Câmara mo confirmou - que teve o filho debaixo de uma árvore, porque o hospital, ali ao lado, estava fechado! Tenho aqui à mão recortes de jornais, recolhidos ao acaso, que referem situações verdadeiramente «exemplares» e talvez «eventualmente chocantes» para alguns dos Srs. Deputados:
Septuagenária morre à porta do hospital - recusaram-lhe assistência (Comércio do Porto, de 11 de Março de 1978); Entrar no Banco do S. José é passar a «Porta do Inferno» (A Capital, de 7 de Junho de 1978); De três hospitais para a Mitra, por mais incrível que pareça. Estranha e insólita odisseia de uma sexagenária, que fraturou um braço, relatada pelo Diário de Noticias, que do Hospital de Setúbal passou para o Sanatório de Outão, daqui para S. José, depois os familiares perderam-lhe o rasto e, com o auxílio da Polícia Judiciária, vieram a encontrá-la na Mitra! É esta a «radiografia do nosso desespero» para usar a feliz expressão do Diário Popular, que serviu de título a uma recente reportagem sobre o Hospital de S. José. Vamos deixar que tudo continue na mesma? Vamos permitir que subsista o fosso em cujos águas turvas chafurdam os tubarões, entre os privilegiados da sorte e os deserdados da fortuna, entre os pobres e os ricos, entre a cidade e o campo?
MRS podia ter se sentido ferido pelo insulto - de quem vive "em águas turvas" onde "chafurdam os tubarões" - e ter dado a mão ao projecto «A Social-Democracia em Portugal», dos social-democratas independentes como Sérvulo Correia, em que se sublinhava que:

"Atingiu-se esta situação porque, além das referidas carências sócio-políticas gerais, o regime anterior não foi capaz de estruturar um serviço eficiente e universal de cuidados de saúde, voltado sobretudo para uma medicina preventiva, e porque no sector da medicina curativa criou condições, favoráveis ao desenvolvimento de uma actividade profissional individualista, fundamentalmente ao serviço das camadas privilegiadas da população, em detrimento de uma medicina institucional organizada"

MRS podia ter sentido o apelo do jornalista para o real em bruto traçado por Sérvulo Correia quando afirmou no Parlamento:
"No meu círculo", de Castelo Branco, "a mortalidade infantil foi, em 1975, de 41 por mil (...) a mortalidade materna foi, em 1975, de 0,70 por mil (...) os partos sem assistência foram, em 1975, de 16,5 %" (...) Como explicaria eu essa inacreditável estratégia aos cinco filhos de uma senhora recentemente falecida, esvaindo-se em sangue por acidente pós-parto, enquanto transportada, sem o tratamento recomendável, do Hospital de Alpedrinha para o do Fundão e daqui para o da Covilhã? (...) Como a explicaria eu aos meus eleitores de Oleiros, mais habituados a não ter do que a ter médico no seu município? Como explicaria aos meus eleitores da Sertã (...) privados de um centro de análises clínicas no seu hospital? Como a explicaria aos meus eleitores da Covilhã (...) obrigados a fazer bichas de madrugada no centro de saúde e cujo velho hospital não responde às necessidades? Como a explicaria aos meus eleitores de Idanha-a-Nova (...), em cujo hospital as camas não tinham ainda há bem pouco tempo colchões decentes? Como a explicaria aos meus eleitores de Penamacor cuja maternidade não funciona por falta de parteira? Como a explicaria a todos os meus eleitores do distrito de Castelo Branco cujo moderno hospital distrital espera há tanto tempo os especialistas de que necessita para dar pleno rendimento às suas instalações e equipamento?
Nada! Absolutamente nada! Nas suas crónicas, nas páginas do seu jornal, não há nada sobre essa realidade. Tudo lhe passou ao largo, nada move as suas ideias senão a macro-estrutura da política, os jogos palacianos, talvez porque, possivelmente, não era essa a sua realidade. Tal como hoje.

A atitude do MRS era, aliás, geminada à do PSD. O debate sobre a criação progressiva do SNS começara há um ano com o II Governo Constitucional (PS, apoiado pelo CDS), envolvendo todas as classes na saúde e na sociedade. António Arnaut era o ministro dos Assuntos Sociais e afirmou taxativamente no Parlamento que o projecto fora torpedado pelo CDS, ao provocar a queda do Governo e afundando com ele o projecto do SNS que estava agendado para ser votado a 12/7/1978. O PS recolocou o SNS no debate parlamentar, de 19/12/1978.
"Descrevi então," afirmou Arnaut, "o panorama angustiante do sector, apontei factos e números, indiquei os vários modelos-tipo de serviços de saúde, rejeitando tanto o colectivista como o liberal e convencionado. Esclareci que a saúde é um conceito amplo, verdadeiramente revolucionário, ligado à concretização dos demais direitos sociais, por isso que, para além da ausência da doença, visa a obtenção de uma situação de «bem-estar» físico e social. (...) A direita parlamentar - e os seus órgãos de propaganda - procuraram apenas lançar a confusão, deturpar os factos, iludir a realidade. A vocação da direita é denegrir e não construir, conservar ou recuperar e não inovar (...) A direita tem medo da verdade porque sempre viveu da mentira. (...) A direita é o passado, com o seu rol infamante de tropelias, de exploração e opóbrio. A direita é o simulacro das caixas, o submundo dos grandes hospitais, a chaga das Mitras, a fraude da medicina comercializada, o formulário das multinacionais..." (Aplausos do PS, do PCP, da UDP e dos Deputados independentes Brás Pinto, Lopes Cardoso, Vital Rodrigues e Aires Rodrigues).
Em Junho de 1979, havia vários projectos no Parlamento. O projecto do PS (assinado à cabeça por António Arnaut e que o PCP, social-democratas independentes e UDP apoiavam); o projecto do CDS - apenas sobre carreiras médicas e administrativas... - que seguia de perto as ideias da Ordem dos Médicos, presidida por António Gentil Martins, defendendo - tal como hoje - um «sistema de saúde» assente fundamentalmente na contratação entre o Estado e a medicina privada. O PSD estava contra o SNS e chegou a ter inicialmente um projecto alternativo (com financiamento público e complementado com um seguro de saúde), mas não o levou avante. O governo Mota Pinto - que esperava ganhar as eleições em 1980 - achava que, fosse qual fosse o projecto votado no Parlamento, seria capaz de o modificar na fase de regulamentação...

Esta temática aparece no meio - no meio! - de um artigo a 3 colunas na página 3, local habitual da crónica parlamentar (Expresso, 10/5/1979), da autoria do Pedro d'Anunciação.

O PSD dava piruetas entre projectos inconciliáveis: "Embora não subscrevamos nenhum daqueles projectos, quanto a nós qualquer um deles apresenta ideias muito válidas e estamos convencidos que, na sua análise conjunta, poderá resultar um diploma realista", disse o ministro dos Assuntos Sociais Pereira Magro (Expresso, 10/2/1979).

Que ideias válidas eram essas? Nada se dizia, nem importava. Pouco importavam igualmente as clivagens que o SNS suscitava.

No início de Março de 1979, realizou-se o 3º Congresso do PS, no Pavilhão dos Desportos em Lisboa.

Foi um congresso de combate contra o governo Mota Pinto. Arnaut foi - segundo o repórter do Expresso - "a principal bandeira de identidade da esquerda do partido", em que o SNS aparecia como referência socialista. "SNS" foi a sigla gritada entusiasticamente pelos delegados ao congresso e militantes presentes. Por diversas vezes.

"António Arnaut, num típico discurso de comício lançou o repto emocional a um partido recuperando ainda mais os traumatismos de uma experiência governativa marcadamente conservadora" (Expresso, 10/3/1979).
Curioso frisar que nessa altura - como agora - a questão essencial era a obrigatoriedade da exclusividade dos profissionais do SNS. O jornalista estabelece uma ligação do bastonário da Ordem dos Médicos ao PSD, o que leva Gentil Martins a escrever ao director, a desmenti-lo:... "o projecto do SNS que defendo só por feliz coincidência poderia ser semelhante a algum dos projectos apresentados na AR e dos quais me alheio"(carta publicada a 9/6/1979).

Ao contrário de MRS, que manifestava o seu vazio de ideias, os social-democratas independentes tinham uma visão crítica do assunto. Defendiam "a criação de um sistema integrado - o Serviço Nacional de Saúde - que permita e fomente a socialização dos cuidados médicos em Portugal, garantindo o acesso igualitário de todos à medicina preventiva, curativa e de reabilitação". Mas apontavam "gradualmente para a existência paralela e em plano de igual dignidade das duas soluções" - pública e privada - " com cobertura apenas parcial dos gastos em caso de recurso à medicina privada". "A dedicação exclusiva do médico constituiria regime excepcional, proibindo-se, no entanto, as sobreposições de tempos de serviço e o atendimento dos mesmos doentes pelos mesmos médicos no sector estadual e no sector privado e restringindo-se ao máximo as acumulações de serviço no âmbito do sector estadual".

Mas nesse capítulo, parte do PS estava - como agora - com a direita:
"Sectores importantes do PS reagiram com desagrado à falta de maleabilidade de António Arnaut, o qual teria impedido que o referido projecto fosse aprovado com o voto favorável dos social-democratas independentes" (Expresso, 16/6/1979). Na semana em que o SNS foi aprovado no Parlamento, esta referência aparece a meio da crónica parlamentar. O jornalista escreve: "Diploma extremamente polémico e contestado pela Ordem dos Médicos, o SNS só será exequível dentro de cinco a dez anos".
O tal debate sobre os projectos, realizado a 17/5/1979 foi dos mais esclarecedores.

O PSD já defendia então a "liberdade de escolha do médico", "a melhor articulação possível entre o sector estatal e o sector privado", convictos de que a "presença clara e inequívoca de que a estatização generalizada não é a medida adequada à necessária rendibilidade dos serviços e profissionais de saúde". Era defendido como "imperativo de extrema urgência, a existência ou manutenção de um numerus clausus, dado que o débito anual de técnicos terá de obedecer às reais necessidades e capacidade de absorção do País". Era a forma de manter um mercado médico protegido, independentemente das necessidades do país.

Um dos oradores do PSD chegou a enfatizar a defesa do "mercado": "Considera o Partido Socialista viável a colectivização da medicina num país que aponta para uma economia de mercado? (...) não entende o Partido Socialista que dos termos do artigo 23.º do seu projecto, resulta a introdução de uma forma de contrôle que aponta claramente para formas populistas, ineficazes e demagógicas? (...) entende ou não o Partido Socialista que o contrôle estatal resulta rigidamente do estipulado nos artigos 31.º, 32.º e seguintes? (...) considera o Partido Socialista que existe qualquer viabilidade, eficaz e social, para o sector privado em convergência com o sector estatal, como preconiza o artigo 52.º do seu projecto? Não será antes a sua progressiva liquidação, ao contrário do que tem sido afirmado?"

Uma ideia que foi contestada sibilinamente por António Arnaut no seu discurso final de debate que enumerou os diversos pontos da proposta da criação do SNS (participação dos utentes, articulação com o sector privado, estatuto do pessoal):
"Os que tanto falam na liberdade de escolha do médico escamoteiam a realidade actual, pois tal direito está drasticamente limitado por razões económicas e geográficas, só existindo para os ricos ou para aqueles que vivem em grandes centros. (...) Traduz-se, afinal, em termos práticos, na liberdade de o médico escolher ou seleccionar os seus doentes e não de o doente poder consultar o médico da sua preferência. (...) O Partido Socialista quer a liberdade para todos, a saúde .para todos! Esse é o verdadeiro sentido da socialização da Medicina que os mal intencionados querem confundir com estatização". (...) 
"Sem tal carreira - que existe para todos os funcionários públicos - não poderia assegurar-se a cobertura médica e hospitalar de todo o País. Esta é uma das razões por que são inadmissíveis os modelos da «medicina convencionada» ou do «Seguro-Saúde» que manteriam os médicos nos seus consultórios das áreas urbanas, sobretudo dos grandes centros, em prejuízo da mancha negra do resto do País. No futuro, todos os profissionais que desejem ingressar no Serviço Nacional de Saúde, terão de sujeitar-se ao regime de carreira."
Pelo PS, o deputado Gomes Carneiro foi contundente:
"Agora o que não compreendemos é como é que o PSD vem defender o sector privado, se existir um serviço público de saúde capaz, real, competentemente apetrechado e com capacidade técnica suficiente para satisfazer as necessidades das populações no domínio da saúde. Será que o PSD pretende que seja o Estado a pagar a medicina privada?"
Quarenta anos depois está à vista que sim, que o projecto sempre foi esse. E quanto ao SNS, foi acabando por ser subfinanciado, desarticulado, sangrado e capturado pelos diversos serviços privados, em que os responsáveis pelo Estado "preferem" deixar a apodrecer máquinas e serviços, para serem "forçados" a recorrer aos serviços privados que os vendem, fixando o preço que querem, pago pelo Orçamento de Estado e sempre com a pressão de que as dívidas do sector da Saúde se acumulam, sem ser pagas.

A ideia era clara, tal como Arnaut a colocou:
O SNS não impede a existência paralela ou mesmo concorrencial de actividades privadas no sector da saúde. O que se pretende é garantir à população o acesso pronto e eficiente aos serviços de saúde do Estado. Trata-se, afinal, de o Estado cumprir a «obrigação social» a que está adstrito. Por isso, o campo de actuação da medicina liberal dependerá da maior ou menor eficiência e aceitação dos serviços públicos. De qualquer modo, o seu papel será relevante. (...) Admitimos, pois, como resulta do n.º 2 do artigo 15.º, o recurso dos utentes a entidades ligadas contratualmente ao SNS no caso de impossibilidade de resposta da rede oficial, e até, excepcionalmente, um reembolso directo. Fora dos casos previstos naquela norma, admitimos realisticamente o recurso a entidades privadas que tenham contrato com o SNS, mas o reembolso não poderá representar, neste caso, acréscimo de despesas para o Estado. Assim se concilia o interesse dos utentes, salvaguardando, quanto possível, a sua liberdade de escolha, com os princípios da universalidade e generalidade do SNS. Como disse atrás, a socialização não é a estatização e o que nos preocupa são os interesses dos utentes, únicos destinatários do Serviço Nacional de Saúde. É à luz destes interesses - e não de quaisquer outros - que nos devemos nortear.
Já após a aprovação do SNS, a direita mobilizou-se para que o debate na especialidade esbatesse as fronteiras entre a prática pública e a privada. Mas a questão era sempre minimalisticamente tratada pelo Expresso e sempre de forma depreciativa para o SNS:
A divisão era entre "os que colocam fronteiras mais vincadas entre a medicina privada e as estruturas estatizadas do SNS" (Expresso, 16/6/1979).
Apenas em Junho, já após a sua aprovação pela Assembleia da República, é que o Expresso aflora a questão, no meio de um artigo e apenas por causa da possível criação de uma plataforma política dos socialistas.
"O SNS e alterações recentemente introduzidas na Lei de Bases da Reforma Agrária têm sido os principais obstáculos à definição de uma plataforma política - e consequentemente a um projecto de Governo entre o PS e os social-democratas independentes" (1ª página, 16/6/1979).
Em Agosto de 1979, a Ordem dos Médicos organiza uma greve ilegal dos médicos, em defesa do fim da exclusividade. Segundo o jornal Expresso, a 23/5/1979, o governo Mota Pinto aprovara o Estatuto do Médico. O governo dera o projecto a ler ao bastonário da Ordem dos Médicos que sugerira modificações, nomeadamente "a possibilidade de os médicos poderem acumular empregos qu pretenderem, horários de trabalho individuais, de modo a facilitar acumulações, incluir todo o tempo de serviço, seja em que regime de trabalho for, para a contagem para a aposentação". Estas alterações modificaram o documento original e as páginas não apareceram rubricadas pelo ministro Pereira Magro, que "não concordara com as alterações". Mota Pinto recebe Gentil Martins, dois dias antes de abandonar o Governo, e Gentil Martins insiste em mais umas modificações. Na véspera de sair, novo encontro, desta vez com o chefe de gabinete, dando conta de que apenas duas das reivindicações não tinham sido acolhidas: indexação salarial automática e classificação numa letra abaixo do pretendido. De resto, ficavam com um estatuto que mais nenhuma classe tinha, levando os serviços do MAS a considerar como impossíveis de aplicar (ler mais no artigo que vem acima na foto). O diploma vai assim para Ramalho Eanes assinar. E criou problemas. Os médicos hostilizam formas de luta.

E em Setembro, MRS escolhe Gentil Martins para a figura da semana, tecendo elogios políticos ao presidente da Ordem dos Médicos, pelas cedências do governo ao Estatuto do Médico - contra "o sindicato considerado conotado com o PCP e que há muito contesta a implantação da Aliança Democrática no seio da ordem dos Médicos" (Expresso, 1/9/1979).

Mas nunca, nunca mesmo, se menciona o fundo da questão. Não é isso que interessa a MRS. Nunca foi. A sua vida era outra.

E hoje?

11 comentários:

  1. Esse é aquele tal partido que querem vender como social-democrata, ou coisa do género. E que não é ideológico.
    Quem quiser que o compre, que não falta quem aceite o contributo.

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  2. Parabéns, mais uma vez, pelo esforço João Ramos de Almeida!

    A comunicação social faz um esforço tremendo em criar a ideia de santidade de Marcelo!

    E só a este "santo" é permitido o populismo, um populismo para que tudo fique na mesma, um populismo que serve os amigos de Marcelo não a maioria da população.

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  3. Só há um critério de avaliação:
    - Quem se preocupa com a saúde da população
    - Quem se preocupa em criar emprego público

    Para já a cretinagem esquerdalha está empolgadíssima em pôr o hospital de Braga a trabalhar 35 horas e a catar mais uns votos!

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  4. Quanto ao Marcelo, se recuarem mais uns anos provavelmente vão encontra-lo fardado na Mocidade Portuguesa.
    E por aí fora num exercício de inutilidades.

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  5. É bom não esquecer estes figurões para melhor compreender o que hoje estão a encenar.

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  6. O que incomoda em Marcelo é parecer o que não é.

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  7. Muito bom!
    Parabéns pelo rigor e pela acuidade

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  8. Caro José,
    Não considero que sejam inutilidades. Nessa altura, Marcelo Rebelo de Sousa era subdirector de um poderoso jornal, tinha 31 anos, era aderente do PSD há 5 anos, já tinha sido deputado da Constituinte pelo PSD, embora um pouco relapso. Não era um pobre político a quem dão uma coluna do jornal para escrever umas coisas. Ocupava um papel considerável no jornal da direita.

    Aliás, se recuarmos um pouco antes do 25 de Abril, apanhamo-lo a escrever a Marcello Caetano, a elogiá-lo pelas suas conversas em família e a querer dar-lhe conselhos. Marcllo parece nem ter respondido. Apesar dos esforços de contacto com Caetano, Marcello nem o menciona nas suas Memórias. Mas MRS parece vingar-se. Quando lhe fazem memórias - como o fez o jornal "SOL" (https://sol.sapo.pt/noticia/492418), diz que Caetano conduzia mal, que não quis ser seu padrinho porque se achava velho, que era frio com ele mas que o convidou para professor na Faculdade de Direito, que Caetano ficava furioso - tal como Balsemão - quando aloucadamente MRS se furtava à censura.

    Vicente Jorge Silva lembra que MRS “era capaz de construir uma notícia a partir de um sururu qualquer” ou que escrevia sobre si mesmo, mas que o fazia de tal maneira que “havia sempre alguma verdade nessas notícias porque ele arranjava as coisas de maneira que a informação fosse sustentada”...

    Lembra-lhe alguma coisa?

    Na mesma reportagem, lembra-se que no verão de 1979, quando se discutia o SNS, MRS "põe jornalistas a percorrer praias e festas em busca de intrigas sociais". Não era um palerma. Mandava no jornal. E no entanto, era aquilo que lhe interessava - e tinha 31 anos!

    Como vê, o passado pode ser muito edificante e não é completamente inútil. Porque quem não olha para lá, tende a repeti-lo. Só que, como dizia o outro, na versão mais farsante.

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  9. O pantomineiro mor do reino já veio ontem tentar defender-se. Que não foi ele que votou contra o SNS em 79 mas o PPD. Que ele, anos antes, até votou a favor na Constituinte. Ou seja, quando ainda nem havia SNS. Ou não passava de mais uma caridadezinha aos pobres. E que até por razões sentimentais foi sempre um grande defensor do SNS já que o pai do pantomineiro mor está quase mesmo patamar de Arnaut na fundação do SNS?! E disse isto tudo sem se rir na inauguração das novas instalações do império falido do militante nº1. Notoriamente ainda cheio de saudades do "SNS" da Previdência que existia antes do 25 de Abril.

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  10. «Como vê, o passado pode ser muito edificante e não é completamente inútil. Porque quem não olha para lá, tende a repeti-lo. Só que, como dizia o outro, na versão mais farsante.»


    Caro João, deixo-lhe por guia o poeta:

    Uns, com os olhos postos no passado,
    Vêem o que não vêem; outros, fitos
    Os mesmos olhos no futuro, vêem
    O que não pode ver-se.

    Porque tão longe ir pôr o que está perto —
    A segurança nossa?

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  11. Para mim nada disso é novidade...Mas há que lembrar...

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