Que se tente ver as imagens apenas pelo som da violência. A violência de quem tomou a iniciativa de protestar contra a degradação social, a violência da repressão, a violência da reacção à repressão, tudo indiciando uma sociedade doente. Tudo tão longe das imagens, tomadas à distância, dos correspondentes nacionais na capital francesa, como foi o caso da RTP.
Ao início, a jornalista Rosário Salgueiro mostrou uma sincera simpatia pelo movimento dos "Coletes Amarelos" em França. Era na altura em que protestavam contra a subida dos impostos. Nas emissões televisivas, parecia partilhar os seus pontos de vista sobre a carga da carga fiscal nas suas vidas. "Às vezes falamos menos nestes directos deste caldo social que explica estes fenómenos", "há pessoas completamente desconectadas da realidade". Preocupações sociais que raramente se viram nas suas reportagens de França, sempre muito centradas - talvez por pedidos de Lisboa - sobre uma agenda mais política, vista de quem governa e não de quem é governado.
Mas depois, quando o movimento começou a ganhar visibilidade, complexidade e corpo na capital, a sua reacção passou a ser outra. E de que maneira.
A jornalista passou, no sábado passado, um dia inteiro no Arco do Triunfo, falou dos "profissionais dos distúrbios" e criticou a falta de eficácia da polícia. Para ela, tudo se assemelhava a "um jogo do gato e do rato", em que os manifestantes fugiam da polícia para aparecer noutro lado, sem se aperceber - "vamos agora para trás da polícia, para nos protegermos" - do nível dos confrontos havidos (ver aqui) ou da tensão latente entre manifestantes e polícia (ver aqui).
Para a jornalista, a polícia era demasiado pacífica, demasiado branda, a lidar com os manifestantes: apenas os empurrava... Dizia ela em directo, ao final da tarde de sábado: "Em Portugal, há o uso do cassetete que - permitam-me dizer - é muito mais rápido a solucionar". Para lá de ser sempre estranho ouvir uma jornalista defender o uso violento da repressão de manifestações, a jornalista deu mostras de não se ter apercebido de que a polícia usou forte e feio o uso dos seus instrumentos (como se pode ver aqui). Quando questionada de Lisboa sobre se Macron estava em causa, hesitou e, por fim, respondeu: "Não... Macron tem a legitimidade política para governar..."
Na 3ªfeira, a correspondente da RTP já assinalava com mais veemência a inversão de tudo: "Macron está em risco, uma sondagem saída hoje de manhã..." Nessa altura, Macron teria apenas o apoio de 23% dos franceses: "Faz lembrar François Hollande em 2013/2014", então contestado pelo movimento dos gorros vermelhos.
Mas a jornalista assinalava também uma mudança no movimento dos "Coletes Amarelos: passou de uma iniciativa "cidadã", para ser outra coisa - bem horrível, parece - uma contestação sindical. E pior ainda: com a malta das periferias que apenas podia ser posta na ordem com o exército. Quase parecia um apelo à reedição do desfecho do que se passou em Paris... em 1871. Dizia a jornalista:
"Os gorros vermelhos eram organizados, sindicalizados e (...) voltou tudo ao normal ao fim de um ano com um recuo também. (...) Agora, a contestação dos "Coletes Amarelos" é bastante mais grave, porque é desorganizada e está a crescer: Vimos liceus a arder...(...) A partir de domingo, foi convocada uma greve dos transportes de mercadorias, sem fim à vista. Os agricultores para a semana ameaçam vir para a rua. E esta contestação que começou por ser cidadã (...) vai juntar-se aos sindicalistas e os sindicalistas vão juntar-se a ela. E depois no sábado há esse perigo iminente..." A jornalista faz então ecos dos conselhos do Governo para que os franceses não venham à capital. "Ora, uma cidade que ainda não recuperou das marcas do passado sábado. Comerciantes, moradores não estão a limpar nada. As paragens de autocarro continuam partidas, as vitrines..." E também dos conselhos da polícia, porque tudo será "pior do que no último": "Os jovens que vão vir sobretudo das periferias, vêm armados com aquilo que puderem para partir". Museus, galerias vão retirar tudo "por causa das pilhagens". "É um país, uma cidade, uma capital em estado de alerta máximo, com os republicanos [designação para os macronianos] a pedir o estado de urgência que permitirá que os militares venham para a rua". E, finalmente, a crítica a Macron que "não fala, não diz nada..."
Veremos o que dirá amanhã, final do prazo dado ao Governo.
De qualquer forma, aconselha-se aos que os jornalistas tomem precauções. É que, de repente, podem ficar do lado errado da História, como aqueles que, durante os confrontos de Maio de 1968, se preocupavam com o vandalismo ou com o facto de, após a noite das barricadas, o Quartier Latin parecer ter sido fustigado por uma tempestade, sobre a qual, aliás, mais ninguém falou nas décadas seguintes...
Pois é, estes jornalistas não sabem ler os movimentos de massas.
ResponderEliminarNão compreendem que incendiar carros de cidadãos ausentes é uma forma superior de manifestação que já incorpora elementos de recusa do modelo de sociedade e aponta a um futuro fundado em valores de uma maior complexidade escatológica.
O que é que quer dizer com os jornalistas devem tomar precauções para não ficarem do lado errado da História (que aliás, não leva a lado nenhum, mas adiante)? Isso, João Ramos de Almeida, soa-me a ameaça. A missão de um jornalista é ser tão objetivo quanto possível, não tomar partido, sabe. É que, quando o faz, isso deixa de ser jornalismo e passa a ser propaganda, qualquer que seja o lado para que tenda a reportagem...
ResponderEliminarA interpretação propria que a esmagadora maioria dos jornalistas e os chefes dos jornalistas fazem da sua missão leva-os a serem a voz do dono e do poder. E isso que é demonstrado neste post. Nao percebeu?
EliminarApenas uma nota. "Os republicanos" são o essencial do antigo partido da direita, o UMP na sua ultima encarnação, e não estão no governo.
ResponderEliminarA disseminação à escala planetária das relações capital/trabalho e a consequente mercantilização de todos os aspectos da nossa vida individual e colectiva (em substância aquilo que continuamos a designar por globalização) manifesta-se também e sobremaneira no domínio da produção de conteúdos no âmbito dos grandes meios de comunicação de massas. Não há por conseguinte e neste cenárioqualquer forma de libertar as notícias e devolvê-las à condição de factos, condição essa que é a sua condição natural. Os denominados critérios editoriais é que seleccionam o que é e o que não é digno de realce informativo, do mesmo modo que são esses mesmos critérios que presidem à escolha dos que pontuam nesses espaços do mais absoluto condicionamento mental que são os do comentário e opinião, em que a mistura de coisas que sucederam, com outras que são pura especulação e com a opinião de quem comenta, constituem a receita perfeita para gerar o estado de alienação que permite a sistemática manipulação dos indivíduos.
ResponderEliminarAtingimos de resto patamares inimagináveis com a introdução no nosso léxico comum de termos novolinguísticos como é o caso das chamada "fake news", que mais não +e do que um modo subreptício de legitimar a aldrabice como instrumento político. Esta ausência absoluta de referências por um lado e de pilares sólidos de sustentação desse poder imenso que é de todas as forma de comunicação de massas, constitui necessariamente um ambiente social, cultural e ideológico que encerra perigos extremos. Aceitando e veiculando acriticamente tudo o que lhe é dado como alimento para o espírito apático, este "homo videns" de que fala G. Saqrtori é cada vez mais e como no célebre quadro de Bruegel, um cego que guia outros cegos.
E já que aqui estou, lembrar que o poder tem por hábito usar provocadores infiltrados, os chamados "casseurs" para retirar apoio popular aos manifestantes.
ResponderEliminarDesta vez a tramóia não resultou tão bem como é hábito porque a maioria dos franceses não se comoveu com as imagens de carros de luxo a arder.
http://www.frontsyndical-classe.org/2018/12/un-crs-temoigne-on-nous-donne-l-ordre-de-laisser-casser-pour-que-le-mouvement-devienne-impopulaire.html?fbclid=IwAR1jaGM3efygOhGKcn5dwh5t9xHVOGQv6QEoaCgUd3_7tjByZU5Fwu9d1aw
S.T.
Quando é que os esquerdalhos se mentalizam que as pessoas estão na rua a lutar contra a elevada fiscalidade e o elevado custo de vida em França. O estado em França engole metade do PIB em despesa pública. Têm a carga fiscal mais elevada da Europa e das mais elevadas do mundo.
ResponderEliminarBasta ouvir o que as pessoas têm para dizer na rua. Mais um caso onde a opinião pública está a milhas de distância da opinião publicada. É que os esquerdalhos esquecem-se que ao contrário das corporação que recebem mensalmente do estado, contribuintes somos todos nós. Num país, há exceção de indigentes e sem-abrigo todos os cidadãos são contribuintes (não confundir fiscalidade com imposto sobre rendimentos).
Em relação aos jornalistas tem toda a razão: não vê em nenhum órgão de comunicação nacional mencionar que a França tem a carga fiscal mais elevada da Europa e das mais elevadas do mundo. O estado em França mama 48.5% do PIB.
ResponderEliminarA verdade é como o azeite: https://www.veraveritas.eu/2018/12/porque-se-protesta-tambem-em-franca.html?m=1
Diz o Chico indignado que "não há por conseguinte e neste cenário qualquer forma de libertar as notícias e devolvê-las à condição de factos". Então a RTP que nos mama 200 milhões por ano na factura da luz não deveria ser esse farol factual? Está descontente com os factos? Recorra a "factos alternativos". Os factos estão aí, basta pesquisar, a questão está na análise dos factos. E como Ciência Política não é Física Nuclear, as interpretação dos factos ficam à mercê das subjetividades dos homens, Pacheco Pereira e Louçã sentam-se cada um na sua poltrona, tomam um whiskey, fumam um charuto e divagam sobre os malefícios do neoliberalismo.
ResponderEliminarAqui o LdB apresenta-nos factos, mas o seu maior pecado capital aqui da casa é a apanha da cereja. Os autores da LdB estão para os factos, como está o urso para as cerejas: apenas apanham as que interessam.
https://en.wikipedia.org/wiki/Cherry_picking
A SIC, como todos os outros órgãos de comunicação social, não prestam um bom serviço público.
ResponderEliminarhttps://sicnoticias.sapo.pt/mundo/2018-12-06-Franca-troca-polemica-taxa-sobre-combustiveis-pelos-gigantes-da-internet
"Este imposto é uma forma de prevenir o fim do mundo", justificou Macron sobre a medida que deveria desencorajar o recurso aos combustíveis fosseis e promover energias limpas. A ideia era pagar os danos das alterações climáticas com estes impostos, mas a medida não foi bem recebida pela sociedade francesa, que saiu à rua em força com "coletes amarelos" e a resposta não tardou"
Apenas uma ínfima parte dos denominados impostos verdes, vão de facto para o ambiente. As pessoas percebem perfeitamente que o imposto verde não passa de um expediente para que o estado obtenha mais receita fiscal, para satisfazer os seus.
Todos os impostos verdes deveriam ser:
- consignados, isto é, deveria haver uma rubrica específica nos orçamentos de estado, onde os cidadãos pudessem ver quanto de facto foi arrecado com esse imposto, sendo que esse valor deveria ser canalizado diretamente na totalidade para a proteção do ambiente ou para os transportes públicos, e não para o bolo geral da despesa pública, como salários ou pensões, pois está por demonstrar que funcionários públicos ou pensionistas tenham um modo de vida mais verde que os dem<ais cidadãos; ou
- inseridos num clima de neutralidade fiscal, isto é, todas, repito, todas as receitas dos referidos impostos verdes deveriam ser canalizadas para baixar o imposto sobre os rendimentos (IRS) ou o imposto sobre o património para habitação própria permanente (IMI).
Nada disto acontece nem em Portugal, nem em França. O que por um lado ludibria o contribuinte-eleitor com um putativo imposto verde, que tem uma função unicamente punitiva, e não correctiva, e que serve unicamente para alimentar, parafraseando Cavaco Silva, o "monstro" (em França o estado consome 48,5% do PIB); e por outro lado incute na opinião pública uma enorme desconfiança perante qualquer imposto verdadeiramente verde, o que faz com que a maioria da população, embora tenha conscientemente uma sensibilidade natural e humana perante a Natureza e o planeta Terra, encara com total desrespeito e desprezo qualquer fiscalidade com um propósito alegadamente ambientalista.
E já se protesta em força também na Bélgica, curiosamente, veja-se, o segundo país da Europa com a maior carga fiscal, depois da França.
ResponderEliminarhttps://www.veraveritas.eu/2018/12/porque-se-protesta-tambem-em-franca.html?m=1
Coincidências dirá o camarada ST! Tudo coincidências, que eles saem à rua na Bélgica apenas para lutar contra a ditadura do Euro e contra o Grande capital!
E não vê estes protestos, nem na Irlanda, nem nos países do Báltico (Estónia, Letónia, Lituânia), que têm das cargas fiscais mais baixas da Europa, e alguns têm o Euro. Coincidências, dirá o camarada ST, tudo, claro, coincidências, porque o Grande capital não manda no Báltico, e por lá não há bancos nem desigualdades.
Esta história de "queimar carros dos ausentes é uma forma SUPERIOR de manifestação" não lembra ao DIABO !
ResponderEliminarO Sr. Pimentel tenta de novo a sua táctica de intruja. Já se explicou lá para trás que é irrelevante a "carga fiscal". O que interessa é sobre quem ela incide e como como é feita a distribuição dos benefícios sociais que tais impostos pagam.
ResponderEliminarMas o que vos trago hoje é um artigo genial sobre a personalidade de Macron. Trata-se de uma entrevista a um autor anónimo de um livrinho/panfleto que supostamente conhece Macron "de perto".
https://lemediapresse.fr/idees/demosthene-macron-est-desormais-percu-par-beaucoup-comme-un-pervers-manipulateur/
Nela explicam as tácticas e manhas de Macron.
"Dire « Macron est le président des 0,1 % » relève du registre économico-social.
Dire « Macron a été élu Président de la République française en 2017 » relève du registre politique.
Les deux propositions sont vraies. Le seul problème est qu’on ne sait pas passer de l’une à l’autre. Comment, en d’autres termes, le « président des 0,1 % » a pu devenir le « Président de tous les Français », selon la formule consacrée. Or, c’est justement pour expliquer cette énigme que j’ai écrit ce livre. Dont le sous-titre n’a pas pu vous échapper : « Philosophie de la ruse et de la démesure ». Je veux dire que c’est par ruse que le président des 0,1 % a pu devenir le Président de tous les Français. Une ruse dûment montée et orchestrée, avec un brio certain. En ce domaine, les talents du Président sont indéniables. Par là, je veux dire aux « innocents », qui croiraient encore que la politique est le lieu d’un débat démocratique au terme duquel chacun se prononce en son âme et conscience citoyenne en déposant son bulletin dans l’urne, qu’il est temps de se réveiller ― c’est d’ailleurs ce qu’ils font. La politique est un spectacle tel que ce qui est faux peut être dit vrai et vice-versa. Mon livre doit être perçu comme une tentative de renversement du spectacle puisque j’en révèle les coulisses et les trucs (à entendre au sens originel du terme : un dispositif scénique destiné à créer une illusion).
"Dizer que "Macron é o presidente do 0,1%" é do registo sócio-econômico.
Dizer "Macron foi eleito Presidente da República Francesa em 2017" é do registo político.
Ambas as proposições são verdadeiras. O único problema é que não se sabe como passar de um para o outro. Como, por outras palavras, o "presidente dos 0,1%" pôde tornar-se o "Presidente de todos os franceses", segundo a fórmula. Mas é precisamente para explicar esse enigma que escrevi este livro. Cujo subtítulo não lhe deve ter escapado: "Filosofia da astúcia e do excesso". Quero dizer que é por astúcia que o presidente dos 0,1% poderia se pôde tornar o presidente de todos os franceses. Uma astúcia devidamente montada e orquestrada, com um certo brio. Nesta área, os talentos do presidente são inegáveis. Com isso quero dizer aos "inocentes", que ainda acreditariam que a política é o lugar de um debate democrático no final do qual cada se pronuncia em sua alma e consciência de cidadão, depositando o seu voto na urna, que é hora de acordar - é aliás o que eles fazem. A política é um espetáculo tal que o que é falso pode ser dito verdadeiro e vice-versa. O meu livro deve ser visto como uma tentativa de subverter o espectáculo, visto que eu revelo os bastidores e os truques (para compreender no sentido original do termo: um dispositivo cénico destinado a criar uma ilusão)."
S.T.
Usando o vernáculo e em tom de contida indignação um comentador anónimo (8 de dezembro de 2018 às 18:16) procurando desconsiderar as afirmações que produzi trata-me como "...diz o Chico indignado". Produzo aqui a minha declarações de interesses, para que conste: é evidente que não frequentámos a mesma escola nem comemos do mesmo prato, por conseguinte peço-lhe apenas que tenha pudor no trato.
ResponderEliminarQuanto ao que escreve e procura dizer, bem, aí o problema é de uma magnitude a que não me abalanço. É que de facto e pese embora o esforço (há sempre algum mérito em quem se esforça,claro) tenho que lhe dizer assim de modo muito frontal: não percebeu nada e, como é compreensível, nada disse. Mas ficou o esforço. Afinal, há sempre algum meritozinho em quem se esforça, não é verdade? Continue a porfiar, não desista, não esmoreça.