domingo, 16 de setembro de 2018

Os outros que carreguem o fardo

Ficámos recentemente a saber que o “superávite da balança corrente da Alemanha, o saldo comercial entre exportações e importações, está prestes a atingir quase 300 mil milhões de dólares, ou 7,8 por cento do Produto Interno Bruto, o maior do mundo”.

A divisão do fardo do ajustamento entre países superavitários e deficitários é um assunto discutido há pelo menos 80 anos e não é necessário ser socialista, eurocético ou soberanista para perceber que, na impossibilidade de exportar para Marte, superávites e créditos de uns são inevitavelmente défices e dívidas de outros. Os superávites comerciais da Alemanha são um problema, escrevia, já em 2015, Ben Bernanke; a Alemanha é o maior problema da zona euro, defendia, em 2016, Martin Wolf no Financial Times.


A este propósito partilho excertos de dois textos que escrevi em Junho de 2015 e em Fevereiro de 2017.

"Em Abril de 2014, o Tesouro Americano, num dos seus relatórios semianuais sobre comércio internacional e manipulação cambial, destaca a Alemanha atribuindo-lhe especial responsabilidade pelo fraco desempenho da procura interna na Zona Euro ao mesmo tempo que afirma que o ajustamento tem estado a ser realizado sobretudo pelos países deficitários através do aumento da sua poupança interna, o que tem sido um obstáculo ao crescimento da economia global. No mesmo relatório, o Tesouro congratula-se pelo facto dos superávites alemães terem sido identificados no Procedimento relativo aos Desequilíbrios Macroeconómicos (mecanismo de supervisão e controlo destinado a prevenir e corrigir desequilíbrios macroeconómicos na UE) como um desequilíbrio que requer monitorização e obriga a correção das políticas, mas mostra-se céptico quanto à capacidade da União Europeia para produzir recomendações capazes de induzir um reequilíbrio simétrico entre os países deficitários e superavitários da zona Euro.
Cerca de um ano mais tarde, a publicação das previsões económicas de primavera da Comissão Europeia tornou claro que a descrença do Departamento do Tesouro dos EUA se justificava plenamente: a propósito da previsão de que no final de 2015 os superávites da balança corrente alemã atinjam o valor historicamente recorde de 7,9%, Pierre Moscovici, Comissário Europeu dos Assuntos Económicos, afirma que “ninguém pode negar que um há desempenho económico muito forte na Alemanha, o que não pode ser punido”. Recorde-se que o Procedimento relativo aos Desequilíbrios Macroeconómicos estatui que a Comissão Europeia deve abrir um procedimento por incumprimento sempre que um país tenha ultrapassado os limites definidos em três anos consecutivos; o superávite da balança corrente alemã está acima do limite (limite arbitrário e assimetricamente definido) desde 2013. Que aquela afirmação possa ter sido proferida por um Comissário Europeu não pode deixar de possuir um significado forte na economia política do poder na Europa.”

Revista Crítica Económica e Social (n.º 5, páginas 96 a 101)

"O paralelismo com os acontecimentos dos anos subsequentes à Grande Depressão de 1929 torna-se inevitável: num contexto de um regime monetário internacional assente no padrão ouro (regime semelhante ao Euro no que diz respeito à não existência de prestamista de último recurso e às taxas de câmbio fixas), as dificuldades da Alemanha foram enormemente agravadas pela recusa dos EUA e da França, países com excedentes nas suas balanças de pagamentos e determinados em manter as suas reservas de ouro, em prosseguir políticas expansionistas. Nas palavras de Barry Eichengreen e Peter Temin:
Com estes países [EUA e França] com balanças de pagamento excedentárias, alguém tinha de estar em déficit. Com a sua recusa em expandir, quando a Depressão eclodiu, alguém teria de contrair. Com a sua recusa em prestar auxílio financeiro de emergência, a amplitude da contração a que os países de deficitários foram submetidos tornou-se quase inimaginável. No fim as consequências políticas foram desastrosas. Agora, quando os países superavitários são a Alemanha e a China, estamos a assistir ao desenrolar de um processo similar. A Grécia compra e vende aos seus parceiros Europeus e, sobretudo, à Alemanha, país fortemente superavitário. Com a relutância da Alemanha em aumentar a sua despesa, a Grécia, desprovida de liquidez, é obrigada a deflacionar [...]. O atual problema da Grécia, tal como o problema da Alemanha nos anos da década de 1930, é que cortar custos apenas torna o fardo da dívida mais pesado”.
Concluindo, se a Alemanha quer manter um lugar de parceiro responsável na comunidade das nações e, parafraseando Joseph Stiglitz, não quer ser responsabilizada por destruir a Europa uma terceira vez num século, deve rever rapidamente a sua política, deixar de usar os salários como forma de desvalorização interna competitiva e tomar medidas para incrementar a sua procura interna e eliminar os seus esmagadores excedentes partilhando com os países de deficitários o fardo do ajustamento.
É provável que isto aconteça? Receio bem que não. A solução da Alemanha para a divergência competitiva com o resto da Zona Euro tem sido a de obrigar todos os restantes países a seguir o pior do seu modelo económico. Em resultado disso, em 2016, todos os membros da Zona Euro, com a exceção da França, obtiveram balanças correntes excedentárias. A balança corrente da Zona Euro, deficitária em 1,2% do seu PIB em 2008, apresentou um superávite de 3,4% em 2016. No entanto, a divergência na competitividade-custo entre os países membros da moeda não foi revertida, ainda que, desde 2010, tenha cessado de se aprofundar. Os desequilíbrios competitivos permanecem, em larga medida, por resolver, embora temporariamente aliviados à custa do resto do mundo, para onde a Zona Euro passou a exportar o seu desemprego. É muito improvável que esta estratégia possa ser prosseguida sem retaliação. A continuar este caminho, com a recusa simultânea da Alemanha em aumentar significativamente os salários dos seus trabalhadores e a provável recusa do resto do mundo em aceitar trocas comerciais deficitárias com a Zona Euro, a França e os países da periferia sul da Europa serão novamente obrigados a períodos prolongados de deflação competitiva e austeridade orçamental. Neste cenário, aquelas economias serão confrontadas com uma nova fase de crescimento marginal ou recessão, com as correspondentes incapacidades para combater os elevados níveis de desemprego que as assolam, a erosão do Estado Social e o crescimento das suas dívidas públicas. Se isto acontecer, como parece provável, será uma questão de tempo até uma qualquer Le Pen ganhar eleições. Neste contexto, será que o país pode dar-se ao luxo de não se preparar para uma saída da moeda única?”

Economia Com Todos (páginas 179 a 193)

Entretanto, a guerra comercial à escala global está instalada e o ritmo da produção industrial na Europa desceu em Junho para o nível mais baixo dos últimos 18 meses. À escala nacional, a Navigator, alvo de taxas alfandegárias de 37,34%, diz que não o esperava (!). Em termos de representação política, a extrema-direita não cessa de ganhar terreno e a Europa, tão expedita a cortar cerce qualquer veleidade dos governos suportados por forças de esquerda na Grécia e em Portugal, assiste impávida ao desastre em curso enquanto, na prática, convenientemente, permite ao xenófobo Salvini ditar a política de fronteiras e vai fazendo umas ameaças vagas e inconsequentes aos governos autoritários da Polónia e da Hungria.

Trágico, não?

18 comentários:

  1. Eu, que não sou racista, só posso ver o sucesso da Alemanha como o resultado de um qualquer modelo de organização e práticas sociais de sucesso.
    Eu, que não sou macro-economista, vejo o aumento de salários como o meio pelo qual os produtos alemães se tornem não concorrências, o que me parece uma medida kamikaze em qualquer modelo económico.
    Eu, que acredito no projecto EU, questiono-me sobre quanto desse excedente não é gerado por produções que têm lugar fora das fronteiras da Alemanha. E se a Europa se torna excedentária, isso é mau para a Europa? Não existe uma moeda europeia para gerir essa situação.
    Eu, como cidadão europeu, pergunto-me porquê as bestas da periferia, que se dizem não racistas, não buscam identificar os factores da competitividade alemã?
    Um factor eu conheço; coisa tão inovadora quanto já lá por 1911 se falou nela: medem o trabalho e tratam-no como um mercado, ainda que aditivado de protecção social.




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  2. Os inimigos da Europa vão sempre focar-se no caso alemão.

    'Single out Germany' dirá Trump aos seus homens-de-mão.

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  3. As elites políticas, dos Países periféricos, que conduziram os seus povos para dentro de esta União Europeia, a par com uma hiper-industrializada Alemanha, impondo um Marco/Euro -obrigatóriamente em uso exclusivo-, são as mesmas que continuam no poder na maioria dos Países periféricos.

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  4. Eu, que não sou racista mas não sou burro, só posso ver o sucesso da Alemanha alicerçado na vantagem monetária de usar um euro grosseiramente subavaliado em relação ao valor real de um euro exclusivamente alemão.

    Mais choradinhos germanófilos, Herr José? Ainda por cima sempre a mesma lengalenga.

    S.T.

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  5. Não será burro, mas seguramente do projecto europeu ou não quer nada ou só quer mama.

    Mas uma vez que está dentro dele e não sabe como sair, será estúpido se continuar a pensar como se não fosse essa a situação.

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  6. O José deveria considerar muito sériamente a psicanálise para tentar ultrapassar essa sua fixação oral. :)

    Muito boa gente sabe como sair, mas é melhor esperar que os bilhetes fiquem mais baratos. :)

    Entretanto Alberto Bagnai publicou no twitter uma imagem semelhante a esta mas em italiano:

    https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/0/07/Instruction_for_wearing_seatbelt_in_an_AirIndia_flight_A319.jpeg/800px-Instruction_for_wearing_seatbelt_in_an_AirIndia_flight_A319.jpeg

    Será que quer dizer que se espera turbulência?
    S.T.

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  7. «Muito boa gente sabe como sair», mas por cá todos guardam segredo.

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  8. @ Herr José

    Essas coisas nem se deve andar a dizer como é que se faz. É fazer-se se e quando as condições favoráveis estiverem reunidas. Com um bocadinho de jeito é o opressor que descobre que já não é sustentável e é ele próprio que descoloniza.

    Basta a determinação de uma minoria bem esclarecida e persistente.

    S.T.

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  9. "«Muito boa gente sabe como sair», mas por cá todos guardam segredo."

    Mas há uma coisa que posso dizer ao José. É que vai acontecer numa 6ª feira ou no dia antes de uma "ponte" prolongada, após o encerramento de bancos e praças financeiras. Só para os Josés que por aí andam não poderem fugir com o guito senão quando tudo já estiver redenominado.

    Portanto, goze bons fins de semana, José! LOL

    S.T.

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  10. A dívida externa em euros já não vai dormir com medo da «minoria bem esclarecida e persistente»!

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  11. Jose está de cabeça perdida?

    Ou de como quem gritava alto e bom som que Angola era nossa, agora canta em bom som e alto que nós somos da Alemanha

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  12. Será que jose na sua fúria ideológica e germanófila já confere propriedades humanas à divida externa? Ao euro?

    Agora têm "medo"?

    Jose talvez não tenha percebido não só o que está escrito em cima como outra coisa bem banal.

    É que como todos os fanfarrões, esconde os seus receios nesta actividade frenética de produtor de comentários.

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  13. "Eu, como cidadão europeu"

    E é assim como de mansinho vemos esta farsa dum nóvel euroinómano, que, despido dos predicados salazarentos, se agasalha agora num protector "deutschland uberalles".

    Como um qualquer vende-pátrias vulgar

    "só posso ver o sucesso da Alemanha como o resultado de um qualquer modelo de organização e práticas sociais de sucesso".

    (Não é mais ou menos isto que dizem os saudosistas alemães de hitler quando falam sobre os modelos de organização nazis?)

    Ou Wolfgang Schäuble que falava sobre os modelos de organização alemães, enquanto Passos lhe lambia as botas e ele insultava os países do sul? Ocultando o seu passado de trafulha nos escândalos financeiros da CDU alemã?

    Ou dos modelos de organização verdadeiramente de sucesso, mediante a corrupção de Portas e dos seus submarinos?

    E os factores da competitividade alemã passarão pelas fraudes das emissões de gases poluentes?

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  14. Para quem acha que o qualificativo de "vende-pátrias" é exagerado atente-se na forma servil e glorificadora como jose se refere à Alemanha e como se refere à periferia:
    "as bestas da periferia"

    Ou atente-se nesta espécie de hino com mais de um século:
    "Um factor eu conheço; coisa tão inovadora quanto já lá por 1911 se falou nela: medem o trabalho e tratam-no como um mercado, ainda que aditivado de protecção social"

    Medem o trabalho medem. Mais os aditivos. Sobretudo nos anos 30-40 do século passado.

    Escorrega sempre para esse lado, hein herr jose?

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  15. "deutschland uberalles"

    Há gente muito culta por estes lados!

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  16. Há gente muito culta, há.

    E que não deixam passar as tretas deste jose. Nem os seus silêncios atroadores quando confrontado com a sua germanofilia, a lembrar outras filias derrotadas em Abril de 1974.

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  17. Quis escrever e ainda duvido se não escrevi "Amen uberalles"

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  18. Quis escrever mas não sabe se escreveu

    Amén.

    Mais outro naco de um discurso claro e lúcido.

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