Numa viagem por África, seguida em magote por repórteres convidados com dinheiros públicos, o nosso Presidente da República, tão prolífico em declarações, branqueou a História nacional, acomodando-a à sua estratégia de comunicação. E sem que os jornalistas o interpelassem.
E fê-lo sobre um tema mal estudado em Portugal. O tráfico de escravos feitos por Portugal: uma daquelas facetas em que o país se notabilizou no espírito da globalização, aliás nunca mencionado nas peças jornalísticas sobre os enormes feitos nacionais nos ditos "descobrimentos".
Disse ele:
"Quando nós abolimos a escravatura em Portugal, pela mão do Marquês de Pombal, em 1761 - e depois alargámos essa abolição mais tarde, no século XIX, demasiado tarde -, essa decisão do poder político português foi um reconhecimento da dignidade do homem, do respeito por um estatuto correspondente a essa dignidade. Nessa medida, nós reconhecemos também o que havia de injusto e de sacrifício nos direitos humanos, como diríamos hoje em dia, numa situação que foi abolida".
Dizer que se aboliu a escravatura e que "alargámos essa abolição mais tarde" é um contorcionismo. Para já, o alvará de 1761 que estabelece a abolição da escravatura no território de Portugal é explícito na razão dessa abolição, numa abordagem da temática aliás muito actual:
Porque os negros "fazendo nos meus domínios ultramarinos uma sensível falta para o cultivo das terras e das minas, só vêm a este continente ocupar o lugar dos moços de servir que ficando sem cómodo se entregam à ociosidade".
Ou seja, não se tratou de alguma consciência do Mal. Foi interesse. Cá e lá. Não houve na decisão qualquer "reconhecimento da dignidade". Depois, o tráfico de escravos manteve-se em força para outros locais do mundo que não Portugal, numa manifestação de um enorme interesse nacional, aliás como hoje se diriam das fontes de energia no centro das disputas mundiais. A abolição foi a 19/9/1761. Mas só no ano seguinte, em 1762,
as exportações anuais de escravos de diversos territórios da África Oriental Portuguesa, segundo cálculos atribuídos a Morais Pereira: Zambézia - 300 (100 cruzados cada; 6% do valor das mercadorias saídas); Sofala - 200 (75 cruzados cada: 10% das mercadorias saídas); Inhambane - 400 escravos (38 escravos cada, 15% das mercadorias saídas). Em 1790, enquanto os ingleses exportavam da Guiné 30 mil escravos de 14 portos, os holandeses 26 mil escravos em 15 portos, sendo os principais fornecedores do Brasil e América espanhola, os portugueses exportavam 10 mil de 4 feitorias.
A citação foi retirada do livro Portugal e a Escravatura em África, de Pedro Ramos de Almeida, Estampa, 1978. E desde a abolição de 1761, na página 66, até ao fim do livro, há mais 80 páginas de notas sobre a escravatura e os portugueses...
Portugal deu, de facto, "mais mundos ao mundo". Mas este também foi um deles. E Marcelo arredondou-o de forma paternalista, resultando num falso pedido de perdão. Um dispositivo em tudo semelhante ao comportamento do fascismo português. Por que razão será que este tipo de factos demoram tanto a engolir?
Fala-se tanto neste blogue da necessidade de reconhecer a importância da comunidade nacional por oposição à nefanda UE, que se esquece que essa comunidade é largamente uma construção feita à volta de mitos, como, no nosso caso, o do 'luso-tropicalismo', de que a nossa colonização foi mais branda que as demais e até teve efeitos ditos 'civilizadores', e que a escravatura é apenas um detalhe embaraçoso e não um crime tremendo. O nosso querido Presidente presta claro o 'lip-service' necessário ao dito 'luso-tropicalismo', ele que gosta tanto de ser popular. Não se pode querer sol na eira e chuva no nabal. O povinho não se recomenda e pode chamar-me elitista à vontade. Por isso também é que essa coisa do populismo é perigosa. Porque ambiciona, em versão diádica ou triádica, ou lá o que é, estabelecer uma relação direta entre a dita comunidade nacional e a elite de facto (chame-lhe 'vanguarda revolucionária' que o significado é o mesmo) que toma as rédeas da governação e que se for preciso manda às malvas os direitos dos indivíduos sob pretexto de que está a cumprir a 'vontade do povo'. Por oposição, a melhor garantia de que esses direitos de pessoas concretas, do 'Manuel Germano' e não do tal 'género humano', que é fácil amar em abstrato, são respeitados, é o respeito pela Lei e pelas Instituições, as 'burguesas', incluindo, pois claro, a UE quando for o caso...
ResponderEliminarTarda em aceitarmos a vergonha que vem com a glória dos Descobrimentos. Se aceitamos a herança dos grandes feitos dos nossos antepassados também temos de aceitar a herança dos crimes.
ResponderEliminarMas temos de saber colocar esses crimes no contexto adequado, porque não se tratam de crimes de Portugal, mas de sim de crimes da Humanidade. A escravatura não foi inventada nem por portugueses nem por europeus. Sempre existiu, em quase todas as culturas, em todos os continentes.
Sendo assim, só temos de lamentar tantos anos de trevas. Porque sendo todos os povos iguais, é natural que pratiquem todos os mesmos crimes. Felizmente a escravatura é agora olhada por quase toda a gente (espero eu!) como um crime grotesco.
Este texto do Jaime Santos não é para ser levado a sério,pois não?
ResponderEliminarComo é possível que a um preciso, oportuno e claro post de JRA se siga um rosário de construções à volta do, perdoe-se a expressão, umbigo do dito senhor, em jeito de tentativa de justificação das suas posições ideológicas a apelar à submissão?
O que tem o denunciado pelo João com a não "necessidade de reconhecer a importância da comunidade nacional"
Em que é que o texto do JRA contradiz que a "nossa comunidade é largamente uma construção feita de mitos"?
A que propósito JS ajusta contas com o nosso luso tropicalismo e tenta arredondar as contas com a UE apelidando-a, em jeito de crítica cúmplice, de "nefanda"?
A que propósito não podemos olhar a nossa História com os olhos emancipados de quem sabe o que quer e como quer , com o tom crítico,realista, leal e verdadeiro sem nos atolarmos no branqueamento daquela ou na miséria da submissão de que não somos merecedores de mais nada do que o destino traçado pelos senhores da UE?
A nossa História foi isto e muito mais. Foi também a gesta ( e agora JS vai franzir o sobrolho porque preferiria o respeito pelas instituições castelhanas) de 1383-85, em que o povinho derrotou a conspiração da nobreza e do alto clero e assumiu nas suas mãos um outro destino diferente do que as elites lhe preparavam.
ResponderEliminarFoi também a luta contra o jugo espanhol, em que o povinho, durante a dominação dos Felipes, conspirou, se revoltou e finalmente levou de vencida as elites terroristas da governança estrangeira.
Foi a gesta quotidiana de todos os que quiseram e que lutaram contra a inquisição e contra o miguelismo
Foi também os que resistiram a todas as tiranias e que mandaram para o raio que o parta o regime fascista mais os seus próceres a cheirar a bolor e a crimes.
A História de um povo é tudo isto e muito mais.
Agora é arrepiante ler que " não se pode querer sol na eira e chuva no nabal" quando se abordam estas questões.
Vejamos.
O que se quer dizer com isto?.Pelo nosso passado de esclavagistas temos que aceitar o nosso presente de escravos? Não podemos ser senhores do nosso destino pelo facto de termos outrora sido senhores do destino alheio? Mas é precisamente esta a grande lição do passado a extrapolar para este presente. Queremos uma terra sem senhores ( sem amos, mas isso seria excessivo para JS?) e arrogamo-nos ao direito de lutar por ela
Depois é um pouco confrangedor verificar que a defesa de posições ideológicas que remetem para a traição a princípios básicos está eivada de pequenas contradições:
ResponderEliminar"pode chamar-me elitista à vontade"...dirá JS a páginas tantas. Para um pouco adiante escrever o seguinte:"a elite de facto (chame-lhe 'vanguarda revolucionária')"
Então o assumido elitista JS não pertence à"elite de facto"? Ou este processo é usado para o assumir que há diversas elites, a de JS, a de facto, apesar da "de facto" ser a "vanguarda revolucionária"?
Mas que macacada vem a ser esta?
"O povinho não se recomenda" e por isso "essa história do populismo é perigosa" é a face assumida duma outra face que não é assumida. O objectivamente mandar às malvas os direitos dos indivíduos sob pretexto de que se está a cumprir não a vontade do povo ( o povinho) mas sim a vontade das elites, traduzida naquela ruminação espantosa do "respeito pela Lei e pelas Instituições, as 'burguesas', incluindo, pois claro, a UE" .
Entendamo-nos. Há boas leis saídas das instituições burguesas e algumas delas vêm da Revolução Francesa, que permitiu o triunfo da burguesia. Agora tais leis, tais instituições tais UEs não podem ter uma origem mitificada, de geração espontânea, fingindo ser supra-classistas, supra-"povinho", supra-"nacionais" ou supra o que quer que seja. O impingir as leis como uma realidade a respeitar a todo o custo é um convite â submissão e ao respeito pelo elitismo ( apesar de depois se tentar negar), é um apelo à servidão acéfala que se acompanha da proibição de não podermos decidir do nosso destino.É apelar que se respeite uma lei que defenda uma lei xenófoba da mesma forma que se respeite uma lei que determine o diâmetro duma maçã.
No fundo um convite à abdicação da democracia. A melhor garantia de que esses direitos de pessoas concretas, do 'Manuel Germano' e não do tal 'género humano', não são respeitados, não são tidos em conta, não merecem outro destino do que o que nos querem impingir estes elitistas desta UE pronta a esmagar-nos na primeira oportunidade.
O passado existiu e tem de ser estudado, mas não é território de culpas ou glórias.
ResponderEliminarVangloriar-se dos feitos dos antepassados é tão estúpido como assumir culpas por atos passados.
Houve descobrimentos e houve escravatura, não existe ninguém vivo que se possa gabar ou lamentar do que fez.
Estes textos a lamentar a escravatura ou gabar-se do caminho marítimo para a Índia lembram-me sempre aquele dito: Não é para me gabar mas está muito bom tempo. Pode ser verdade, mas não tivemos nada com isso.
Dizem-me que a geringonça e Marcelo chegaram a planear um sessão de auto-flagelação evocativa das maldades dos portugueses em África. mas Bruxelas mais uma vez bloqueou a soberana vontade de humilhação nacionalista.
ResponderEliminarNem culpas nem glórias ditas desta forma um pouco apressada como que a sacudir s areia do capote.
ResponderEliminarTrata-se de estudar este passado para ajudar a descobrir o que somos no presente, olhando para o futuro. Com a objectividade e o distanciamento que os anos e as mortes deviam dar. Mas sem escamotear ou esconder nada.
E sim, tivemos tudo a ver com isso. A cobardia passa também pelo meter a cabeça debaixo da areia. E por outras coisas mais.Talvez seja por essa linha que Obama no Japão não pediu fesculpa pelo massacre atómico. Ou que a Igreja Católica tenha demorado tantos anos a pedir desculpa a Galileu.
O que andam a dizer ao coitado do Jose.
ResponderEliminarOu dito de outra forma.Por onde andará o pobre para ouvir tais enormidades? Geringonça e Marcelo? Auto-flagelação? Humilhação nacionalista?
Há aqui algo de masoquista? Ou travestismo de?
Antes andava a berrar que Angola era nossa e que os Pides eram uns beneméritos na defesa do império colonial.Agora aparece com esta dissertação.
Infelizmente cheira por demais a branqueamento. Canhestro e envergonhado. Mas definitivamente branqueamento
Segundo me consta, a escravatura foi "abolida" em TODO o Portugal (colónias incluídas) em 1878... Dados os pruridos preciosistas de tanta gente quando se toca nas pratas da família, contextualizemos: os EUA aboliram-na em 1865; o Brasil acabou com ela em 1888. Quanto a "pioneirismos" e vanguardas, estamos conversados, não é verdade?
ResponderEliminarHá, no entanto, um pioneirismo do qual os puxadores de lustro às glórias pátrias (o nosso excelente PR neles, pelos vistos, se inclui...)curiosa e convenientemente se esquecem: foram os Portugueses aqueles que deram o tiro de partida ao esclavagismo moderno com o desembarque de escravos africanos negros, em Lagos, no Ano da Graça de Nosso Senhor de 1444. Mas isto de ler Zurara já não se usa... Nem Zurara nem, tão pouco, José Capela, Maria do Rosário Pimentel, Charles R. Boxer, René Pélissier ou David Birmingham. Para gostos mais revisionistas há os Arlindo Manuel Caldeira e os João Pedro Marques para compulsar...mas, pelos vistos, são estes últimos tão lidos quanto os primeiros.
Razão tem o bom do Pélissier quando afirma que a grande especialidade lusa é a de passar enxutíssimo por entre os pingos da chuva: tendo sido nós os primeiros a iniciar o tráfico negreiro e, contra ventos e marés, os últimos a largá-lo, ainda continuamos a ver-nos como filantropos vanguardistas. É a santíssima e multissecular trindade do nacionalismo bacoco, da enraizada ignorância e do contumaz videirismo no seu melhor. Dito isto, só uma coisa há a constatar: Marcelo Rebelo de Sousa é, verdadeiramente, um PR em total consonância com a mais atávica ignorância do seu Povo.