terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Todo um programa

Uma das maiores vitórias do neoliberalismo reside nas transformações registadas na cultura material das sociedades. A provisão privada de bens e serviços, no quadro de mercados liberalizados, fixa as normas de consumo, onde todos bens e serviços são, aparentemente, homogeneizados enquanto mercadorias. Digo aparentemente pois este processo é sempre impossível de atingir e contestado nas diversas fases da provisão.

Por exemplo, a água potável nas nossas torneiras ainda está longe de ser entendida como uma simples mercadoria, à imagem e semelhança de uma Coca-Cola ou de uma água do Luso. Os sindicatos, muitas autarquias e associações de consumidores constituem uma barreira difícil de transpor para a entrada a toda a força do capital na provisão deste bem. A água é ainda entendida como um bem com especificidades próprias, que não deve estar sujeita à lógica do lucro.

O meu exemplo da água não é inocente, pois bens e serviços materialmente distintos, mas igualmente essenciais a uma vida digna, parecem já estar culturalmente no domínio da provisão privada, como é o caso da electricidade. Com a liberalização do mercado eléctrico junto de consumidores finais, o número de agentes privados cresceu na simulação de um mercado concorrencial organizada pela entidade reguladora do sector, a ERSE, que vigia os seus proveitos e custos. Esta liberalização, acompanhada pelas privatizações da EDP e da REN, conduziu a um resultado pouco surpreendente: aumento do preço da electricidade consistentemente acima da inflação, e lucros crescentes para as empresas do sector, conquanto os seus custos financeiros sejam cada vez mais pesados devido ao endividamento da última década e meia. Dou um exemplo: a EDP, embora tenho tido em 2014 um endividamento líquido de 17 000 milhões de euros, que compara com 9 000 em 2006, com a correspondente mais do que duplicação dos encargos financeiros, de 207 milhões em 2006 para 597 milhões em 2014, consegue resultados positivos de 1200 milhões de euros nesse último ano contra 940 milhões em 2006. Não analisei detalhadamente as contas de forma a perceber de onde vêm os proveitos e a evolução dos custos (bem sei que o preço dos combustíveis fósseis tem aqui influência), mas não me parece que o aumento acumulado de 43%, em termos reais, entre 2006 e 2014, do preço da electricidade lhe seja alheio.

Conclusão, liberaliza-se o mercado, privatiza-se a produção e a electricidade passa a ser uma mercadoria como as outras. O problema é que não é. Este ciclo neoliberal encerra contradições e falhas que precisam de ser resolvidas, sob pena de colocar todo o processo em causa. O aumento dos preços aos consumidores finais acarreta um problema irresolúvel. Por mais que o entendimento da electricidade se altere, quem não tem rendimento deixa de pagar a conta e de ter acesso. Isto é um problema para o vendedor de electricidade e um problema político, pois torna a contradição entre interesses privados e interesse público mais saliente. Neste contexto, criou-se a tarifa social de electricidade. Assim, em 2011, já depois da liberalização do mercado, o Estado impôs um desconto por via da tarifa destinada às franjas mais desfavorecidas. Este desconto é teoricamente suportado pelos fornecedores de electricidade, embora quase 20% do desconto final seja suportado pelo Estado, via IVA. Ainda assim, o impacto é marginal nos proveitos das empresas,O ciclo fecha-se. Os problemas do acesso ficam supostamente resolvidos, conquanto o esforço dos que têm menor rendimento seja cada vez maior, beneficiando os accionistas das novas empresas privadas. A tarifa social é um resíduo social da nova organização do sector guiada pelos preços, que legitima uma transformação profunda do nosso entendimento do que era antes um serviço público.

Todo este meu relambório está obviamente relacionado com o “embandeirar em arco” do governo e partidos que o apoiam em torno do alargamento da tarifa social, de resto já promovida pelo anterior governo. Argumentarão que isto é melhor do que nada e que irá beneficiar quem menos tem. Será verdade, embora os limites deste modelo sejam claros quando pensamos que um indivíduo, que viva sozinho e ganhe o salário mínimo, está excluído desta tarifa. Contudo, terá de ser claro que aceitar a tarifa social como forma de intervenção pública na electricidade é abdicar parcialmente de alternativas universais ao neoliberalismo na provisão de bens e serviços. A missão de um governo passa a ser entendida como a de resolver, com base em estratégias dependentes de condições de recursos, eventuais falhas sociais de um mercado à priori aceite como modo ideal de coordenação das economias. Todo um programa.

16 comentários:

  1. Um bom texto. A apontar que o caminho tem que passar necessariamente por alternativas a este modelo de sociedade baseada no lucro e para o lucro

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  2. A tarifa social tem o mesmo adn das cantinas sociais e do rendimento mínimo garantido. Embora se faça a apologia da natalidade, para equilibrar o saldo demográfico, sabemos que os excedentes de mão de obra vão engrossando os exércitos de excluídos. Até que a corda parta.
    Parece-me. Mas quem sou eu?

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  3. A lógica do lucro !!!
    Que grande consumição!
    Pois não há quem pense que o capital deve ser remunerado, conservado, substituído se desgastado?
    Sendo que o que se entrega como mercadoria não é capital mas incorpora uso de capital, não é que há quem pense que essa remuneração e essa incorporação de uso e conservação/substituição deve ser incluída no preço da mercadoria?
    Ouvem-se as coisas mais estranhas…estas como outras, como depósitos a prazo ou juros da dívida pública!

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  4. sabujo zé
    mais uma vez desonesto a argumentar
    não se trata do capital ser remunerado mas da lógica do lucro desbragado aplicada a um bem essencial
    não existe mal no lucro numa lógica de serviço público e de custeio das despesas operacionais, amortizações etc mas o mal já aparece quando a única lógica não é a do lucro como afirmas mas da maximização do lucro aplicada a um bem essencial
    nada contra o lucro
    tudo contra a maximização do lucro sem regras quando estamos a falar de bens essenciais
    o caso da água é ainda mais acintoso e nos casos onde os teus amigos deixaram que tal acontecesse o preço subiu duma forma desmesurada e injustificada e a qualidade baixou drasticamente
    sabujo zé
    na minha zona a água é bem público, dá bom lucro (ajuda a compôr e bem o orçamento municipal), tem qualidade e há investimentos todos os anos no melhoramento e manutenção da rede
    o que os sabujos como tu querem é que a coisa seja passada a amigos que vão só espremer a coisa de modo a pagar-lhes as vaidades pessoais

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  5. "... bens e serviços materialmente distintos, mas igualmente essenciais a uma vida digna, parecem já estar culturalmente no domínio da provisão privada, como é o caso da electricidade."
    A partir desta frase surge a dúvida. Se o critério para a sua análise são os bens "essenciais a uma vida digna", quer isso dizer que o raciocínio que elabora a partir da água e da electricidade poderia também ser feito para os seguintes bens (esqueçamos, para já, os serviços)?
    - Habitação
    - Alimentação
    - Vestuário
    - Medicamentos

    Posso depreender portanto que defende também para estes bens essenciais a uma vida digna um outro modelo de coordenação das economias que não "o mercado"?

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  6. ...e sabujo zé, esqueci-me de dizer
    tudo isto a um preço equilibrado

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  7. Aos doridos por não satisfazerem vaidades pessoais e aos raivosos por outros o poderem fazer.
    Duas notas ao que escrevi acima.
    - Há ainda que considerar que o preço da mercadoria incorpore um prémio de risco, que diferencie quem corra riscos nos mercados e quem compre títulos da dívida pública (garantidos que são pela força do Estado em inventar e cobrar impostos).
    - Onde não houver risco ou concorrência e haja interesse público relevante o Estado intervém por duas vias:
    - com leis antimonopólio e entidades reguladoras
    - através de concessões que condicionam os termos do negócio
    Aqui entra não raro essa praga estatal que é a corrupção e o compadrio, que dispensa ideologias e satisfaz umas tantas necessidades/vaidades pessoais.
    Acontece também que se o Estado é governado por esquerdalhos idiotas, tudo se complica por que têm que satisfazer aqueles a quem dirijo estas notas, e tudo se passa em grande berreiro contra o capital que, se não tiver paciência para o triste espetáculo, se põe a milhas.

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  8. Parece-me que a análise do Nuno ao preço da eletricidade não tem em devida consideração a existência de um "défice tarifário" resultante de, no passado, o governo não ter permitido que o preço da eletricidade subisse tanto quanto o custo da sua produção. Nomeadamente quando o preço do petróleo subiu muito.
    Ao que julgo saber, a EDP está com uma grande dívida precisamente devido a esse défice tarifário.

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  9. Corrupção dispensa ideologias?
    Mas decerto. Embora ela seja intrínseca a uma sociedade venal que vive para o lucro e tendo em vista apenas o lucro.
    Ela é epidémica em socieddades assim.Que têm entre os seus mais acérrimos defensores os que vivem da exploração de mão-de-obra alheia.
    De resto é ver a coorte de corruptos atrelada- ver dias loureiro e oliverira e costa, vara e santana lopes, paulo portas e passos coelho

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  10. "esquerdalhos idiotas" ?
    Ou outra forma de se berrar feito tonto, sem saber o que se diz e "esquecendo" o que se disse.
    Acintece com algumaa frequência. Sobretudo naqueles que defenderam até há bem pouco tempo alguns dos corruptos de peso que andaram e andam por ai. Por aí estão dispersas as odes a tais corruptos. Por aí estão dispersas as vaidades pessoais mas também de conluio e de cumplicidade com o que de pior tem a sociedade.

    Quanto aos impostos...os testemunhos da fuga a estes como auto-defesa dos patrões que acumulam os seus ilegitimos lucros nas offshores estão por aí. A defesa de tais comportamentos criminosos de quem agora chora pelo Capital(sim, estou-me a referir ao das 9 e 49) permite de facto "iluminar" a qualidade do vero capitalista.

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  11. DE facto, a lógica do mercado é o lucro; tudo bem desde que houvesse competição séria, que frequentemente não há. Mas também é preciso dizer que bens de primeira e básica necessidade não deviam estar sujeitos à lógica do mercado.
    Além disso quando se fala em necessidade de remunerar o capital , como um dos comentadores aqui faz, esquece-se ou não se percebe, que o próprio capital resulta do trabalho e não o contrário; porque o que é o capital senão um símbolo dos frutos do trabalho. A única riqueza verdadeira é o trabalho, portanto se o capital resulta do trabalho é bom que seja remunerado, mas o dito comentador não se deve esquecer que o que acontece é que frequentemente o desfasamento entre a remuneração do capital (de uns) e a do trabalho (de outros) é desmesurada. Um verdadeiro escândalo!!!

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  12. Suspeita-se que o destrambelhamento dum comentário aí em cima em defesa do Capital e dos seus "prémios de risco" tenham a ver com a aprovação do Orçamento.
    E com a evidência da necessidade de alternativas a este modelo de sociedade baseada no lucro e para o lucro.

    Tão ridiculamente claro...

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  13. Uma sociedade baseada no lucro e para o lucro!
    Tenho uma informação confidencial: a sociedade é composta por pessoas que, segundo um investigação científica, têm 99,9...% de características comuns.
    Ou o lucro e para o lucro é uma dessas características comuns ou é seguramente uma opinião estúpida!

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  14. Pois é.
    Uma sociedade que vive para o lucro e do lucro representa o topo de gama para quem vive do lucro e para o lucro.
    Uma sociedadde em que os parasitas se sentem à vontade. Uma sociedadde venal e podre, onde a corrupção campeia porque o lucro é a medida de todas as coisas e agem de qualquer forma para obterem o seu quinhão do saque aos demais.

    Pois é. Há quem defenda este modelo de sociedade por motivos óbvios.
    E nem repara nos disparates que escreve para justificar o homem como lobo do Homem

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  15. Vejamos esta "pérola"

    A informação confidencial fala numa "investigação centífica" ...
    Será esta confidencial ou pública?

    Mas a investigação científica revela que 99,9...% das pessoas têm "características comuns"

    E auqi começamos a ver como o ocnhecimento é necessário. Que não basta aos filhos -família dos industriais de antanho irem para Londres ou para Paris tirarem um cursozito para depois se passearem como "engenheiros" ou como "doutores" num pais medíocre e fascistóide, assumindo o lugar na hierarquia respectiva dos donos de Portugal.
    A mediocridade não pode passar

    O que é isto de "características comuns"? Caracteristicas comuns aos seres vivos? Características comuns à espécie? À sub-espécie? Ao nível do ADN?
    A que características o tal "estudo científico", que permite gerar informação confidencial, se refere? E em que universo?
    Por exemplo duma maneira mecanicista podemos dizer que nós temos quase metade do mesmo DNA de uma banana. Um idiota compartilha o mesmo ADN com um génio numa percentagem significativamente superior.
    Estamos assim no reino, não dos seres vivos, mas sim das "opiniões estúpidas"

    Mas no seu aprofundamento vemos que se insiste em convocar o "lucro e para o lucro" em característica comum.Não vale a pena rir que o caso é sério, lolol.
    Infelizmente não há nenhum estudo científico que diga tal enormidade. As características atribuídas à raça humana não passam por este "baptizado" idiota.Mais.Os estudos científicos apontam exactamente para o contrário.
    Num post notável João Rodrigues desmonta duma forma exemplar a tese dos "opinadores estúpidos" (repito a adjectivação apenas ) citando os estudos de ellen-meiksins-wood http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2016/01/ellen-meiksins-wood-1942-2016.html

    Neste ficamos a saber mais do que o sujeito que assim se mostra gostaria que soubéssemos a seu respeito.

    A mediocridade não passa. Também ao nível da argumentação estúpida

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  16. sabujo zé
    nem me vou dar ao trabalho de refutar os teus argumentos de sabujo
    basta ler a tua introdução ao tema para deparar com a cartilha infantil neo-liberal
    àqueles que que denunciam a corrupção chama-se-lhes simplesmente invejosos
    nem uma criança de 5 anos argumenta assim
    gasto e seco zé...
    não é a "praga estatal" o problema da corrupção
    mas sim os teus amigos que se servem dele
    quanto à regulação e outras "tretas" que escreves tem-se visto o seu brilhante papel
    basta ver o "excelso" trabalho do Banco que não é de Portugal as PPPs e outras concessões
    depois vem o sabujo zé atacar o Estado em vez dos amigos que lá estão a apropriar-se do alheio
    sabujo zé dá-me vontade de rir
    é tão sarnento e perdigoteiro que acaba por se tornar um personagem bizarro, daqueles que nos enchem de espanto num primeiro olhar pelo inesperado e ridiculo das suas piruetas para finalmente cairmos no gargalhar

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