«Imagem: um menino de borco numa praia. Como se aquele filme maior da nossa compaixão, O Garoto de Charlot, um homem pobre dando a mão a um miúdo, logo à primeira imagem dissesse: "The end." Então, outro filme de Chaplin, A Quimera do Ouro. Charlot, imigrante na América, atravessa mais uma fronteira, a canadiana. Como milhares de outros garimpeiros, ele partiu para a região do Klondike, na última corrida do ouro, em 1897. Não foi fácil, lembrem-se da imagem de Charlot comendo a bota, cozendo a sola, sugando pregos, lambendo atacadores... Mas no final ele já é feliz, vemo-lo rico e com a amada. Filme? Não só, aconteceu a gente de verdade. Friedrich Drumpf, por exemplo, imigrante alemão, foi barbeiro em Nova Iorque, perseguiu a quimera até Klondike, voltou aos Estados Unidos, fez família e deixou bons americanos. Esse chegou à praia e pelo seu pé avançou para uma nova vida, fez seu o novo país. Os seus netos devem estar agradecidos por o avô ter chegado ao porto, sussurrado "América, América..." e entrado. O menino de ontem não passou da praia, não terá netos. Já Friedrich Drumpf teve netos. Um deles usa o nome Drumpf, mas americanizado, Trump, Donald Trump. No mundo, o da perpétua viagem, os cidadãos têm sempre velhos antepassados imigrantes. Para alguns, como o novo Trump, os novos imigrantes "trazem drogas, crime, são violadores e suponho que alguns são boas pessoas". Era ideia para epitáfio, na praia: "Talvez boa pessoa."»
Ferreira Fernandes, O Garoto de Charlot não passou da praia
«Teríamos tido uma quarta-feira mais simpática se não tivéssemos olhado para esta imagem. Como teríamos tido, há dois anos, um melhor Agosto se não tivéssemos visto os bebés sírios mortos em Damasco com armas químicas. Teria sentido só vermos essas imagens daqui a 50 anos? Esta imagem é uma notícia. É a primeira vez que vemos uma imagem assim. Desde 2013 que lemos sobre mortes diárias no mar Mediterrâneo, de famílias, pais e filhos, que tentam chegar à Europa fugidos da guerra e da pobreza. Em Lampedusa, o Papa Francisco fez um apelo ao “despertar das consciências” para combater a “globalização da indiferença”. O mundo comoveu-se e seguiu em frente. À sua volta, estavam jovens negros de cabelo crespo. Não nos impressionou. Olhámos para eles como aventureiros de países perdidos. Agora os náufragos no nosso mar são brancos de classe média. Tudo neste bebé é familiar. O corpo, a pele, a roupa, os sapatos. Não sabemos se esta fotografia vai mudar mentalidades e ajudar a encontrar soluções. Mas hoje, no momento de decidir, acreditamos que sim.»
Editorial do Público, Porque publicamos esta fotografia
«Eu bem queria mudar de assunto, mas a UE não me deixa. Chama ao drama dos refugiados um "assunto urgente", mas só tem vaga na agenda para uma reunião extraordinária, ainda por cima ministerial, daqui a 15 dias. É incapaz de dignificar o que resta do seu método comunitário, tentando recuperar o estatuto da Comissão, ou até organizar um Conselho Europeu urgente que sente à mesa a imensidão de líderes embeiçados pelos seus umbigos. É sempre lesta a reunir aos domingos sobre a moeda única, fomentar maratonas negociais para vergar parceiros ou ter governantes a fazer figuras tristes no Twitter, mas não consegue arranjar umas horas para, em conjunto, discutir medidas urgentes que salvem vidas e salvaguardem Schengen. É triste, mas não surpreendente, assistir ao desaparecimento em combate do senhor Juncker, ouvir o Durão Barroso-analista fingir que o Durão Barroso-político nunca existiu, ver alguns países de Leste comportarem-se com a amnésia própria dos ingratos da história, ter políticos moderados com medo das franjas, hoje residuais, amanhã maciças, e um Parlamento Europeu com força prática inversa à que lhe atribuem os tratados. E é angustiante, mas também não surpreendente, ver cair a mitologia da UE como "potência normativa" ou "exemplar" para terceiros. É que nem as regras se cumprem, nem os procedimentos se preservam, nem a influência se exerce. No final, são as fontes de refugiados que continuam entregues ao tribalismo islamista, à sangria dos ditadores e à lei da bomba. No final, também, é a preservação da integração europeia que fica esvaziada, sem denominadores comuns, com mais contabilistas do que políticos, mais moeda única do que Schengen, menos soluções comuns do que arbitrárias, menos moderação do que xenofobia. Se a UE já vivia em crise identitária, hoje acrescenta-lhe a existencial. Temo pelo que aí vem.»
Bernardo Pires de Lima, Um "furo" na agenda
Gosto, particularmente, do início do editorial do "Público" incluído no "post". Ele constitui todo um inteligente programa de obnubilação de responsabilidades próprias (e quando afirmo "próprias", chamo-lhes, coerentemente, nossas). Entre o bébé morto na praia de há pouco e os cadáveres de bébés gaseados de há dois anos, deu-se um outro assassinato nefando: o assassinato da Verdade. E que verdades foram essas que sucumbiram às mãos dos carrascos dos nossos queridos "media"? A verdade de que a morte de milhares de seres humanos (crianças e mulheres, homens novos e homens velhos) é o resultado esperado das políticas de "Kadaffi must go" ( e de que maneira ele foi, meu Deus!) e de "Assad must go" tão inteligentemente gizadas por Obama e tão genialmente secundadas pelos não menos geniais Cameron e Sarkozy e "tutti quanti"; a verdade de que as crianças gaseadas de Damasco não o foram pelo exército sírio, mas sim pelos "freedom fighters" jihadistas que, numa manobra de desespero genocida, pretendiam com tal acto forçar a intervenção da NATO (e não foi a única vez que o fizeram, acrescente-se).
ResponderEliminarAvançando no editorial, uma perplexidade se me depara: se a "brancura" (e só ela) de quem agora, no mar ou na praia, morre à morte fugindo nos assombra e faz sangrar o coração, por que motivo a "brancura", tão alva quanto a dos que ora morrem, das 500 crianças palestinianas assassinadas em Gaza nos mereceu não mais do que um bocejo entediado?
O que o editorialista do "Público" sabiamente nos oculta é o facto de que, se queremos de futuro não ver repetidas estas cenas dantescas, teremos de votar e eleger, nesta Europa das democracias, políticos que não sejam uns profundos genocidas psicopatas.
Ao mesmo tempo que a nossa querida comunicação social sabiamente oculta pretéritos entusiasmos pelas passadas (e actuais) políticas ocidentais ( a destruição do Iraque e do Afeganistão; o "Kadaffi must go" e o "Assad must go" made in EUA e UE) que descambaram na actual tragédia, ela pateticamente ensaia a pueril desculpa do "eu fiz, mas o menino do lado também fez" que serve, à perfeição, a ela, aos seus "moderados" amigalhaços políticos e aos seus donos. Só assim se poderá compreender a momentosa notícia das trágicas mortes dos refugiados indonésios a caminho da Malásia.Compreende-se a auto-indulgente manobra, mas o argumento não colhe: por antiga que seja, a criminosa responsabilidade do Ocidente naquilo que criou o actual "paraíso" que é a Indónesia - o arquitectar, o apoiar e o financiar do golpe genocida (um milhão de mortos) do general Suharto contra o não-alinhado Sukarno - não se esquece nem prescreve.
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