O que seria hoje da esquerda ainda dominante no campo intelectual e político, da esquerda razoável, sensata e europeísta, a que também por aqui costuma invocar Kant e Habermas, se não fossem as franjas ditas radicais e eurocépticas?
Esta pergunta pode parecer deslocada, mas ainda assim coloco-a porque tenho reparado que a tal esquerda, e nisto não está sozinha, invoca estas franjas cada vez mais, qual espectro simultaneamente ameaçador e atractivo, para tentar chamar quem manda à razão; a uma razão social e historicamente descontextualizada, que teria sido perdida algures num processo de integração já sem as sábias e desinteressadas elites de uma tradição europeia inventada.
O idealismo é o outro nome desta esquerda que foge da realidade do conflito social e nacional, duas faces da mesma moeda nas periferias europeias, que foge das alternativas que nem por isso desaparecem no presente contexto, como não desapareceram em anteriores: capitulação perante os imperialismos iníquos ou aposta na libertação nacional e social, sempre acompanhada, claro, do contágio e do internacionalismo que a possam apoiar. Historicamente, a luta de classes, como sublinhou recentemente Domenico Losurdo, sempre se declinou no plural, lutas de classes. E estas tiveram, no plano internacional, a luta pela libertação das nações oprimidas como uma das suas componentes vitais.
Na realidade, hoje em dia, é como se a esquerda europeia dominante delegasse nas tais franjas as tarefas intelectuais e políticas necessárias e de que abdicou, substituindo a grelha das lutas de classes por uma actividade intelectual e política que consiste em vislumbrar sinais de sensatez nas elites do poder, a esperar por esse momento de razoabilidade e a contribuir enquanto espera para uma inflação de analogias históricas deslocadas, em suporte de programas reveladores da extensão do recuo: do New Deal ao Plano Marshall, mas agora europeus, verdes e destinados prioritariamente ao martirizado Sul da Europa. Seria isto ou as franjas. E seria isto porque as elites não querem as franjas, claro. Tudo tendo como referente as franjas, repare-se.
Note-se desde já que estas analogias começam por ser deslocadas porque o New Deal foi implementado, a partir de 1933, mobilizando os instrumentos de política económica de um Estado capitalista realmente existente e a União Europeia não é um Estado e não o será, sendo que os elementos de soberania que capturou estão desenhados para impedir políticas de recorte keynesiano; o Plano Marshall, por sua vez, foi um momento de internacionalização do Estado norte-americano do New Deal, num contexto em que o espectro do comunismo era precisamente uma realidade bem concreta, dos fortíssimos Partidos Comunistas Francês e Italiano aos tanques soviéticos em Berlim, passando pelas guerrilhas comunistas gregas, realidades sem equivalentes contemporâneos, claro. Não por acaso, o agora tão invocado perdão de parte substancial da dívida à República Federal Alemã, na década de cinquenta, foi uma das suas componentes vitais.
Mais uma vez a pergunta surge: qual é o mecanismo político que garantiria hoje resultados equivalentes? Na ausência de alternativas “ameaçadoras”, será a razoabilidade das elites do poder a fazer o trabalho?
Excerto de um artigo - De que é que têm medo e de que é que temos medo? - que escrevi para o Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Abril. Saiu num dossiê sobre perguntas para os 41 Anos de Abril juntamente com um artigo de Eduardo Paz Ferreira: Pergunto ao vento que passa. Entretanto, não percam o artigo da Sandra Monteiro: Para criar democracia social.
A esquerda eurocêntrica coisa diferente de europeia compartilha muitas das premissas epistemicas da direita uma hierarquia que se estende até alguma esquerda mais à esquerda e que faz desta o elo mais fraco e instável e é isso que mete medo e vem ao de cima nos momentos em que a política normal é sacudida-"anomalias"no paradigma dominante culminando na sua rutura.
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