quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

A Europa neoliberal, a «federação» e as «reformas estruturais»



«Como é que a União Europeia, que foi construída em nome da democracia, se transformou, no percurso, numa ameaça à democracia? A resposta a esta pergunta pode encontrar-se em obras que foram escritas durante a Segunda Guerra Mundial por pessoas que estavam a pensar a ordem europeia após a Segunda Guerra Mundial. Um desses autores é Friedrich Hayek, a grande referência intelectual de pessoas como a senhora Thatcher e que escreveu este livro, 'O Caminho para a Servidão', que tem um capítulo sobre as perspectivas da ordem internacional.
Este capítulo tem uma citação de Lord Acton, uma referência muito conhecida do pensamento liberal, em epígfrafe. E eu queria ler-vos essa epígrafe: "de todos os controles à democracia, a federação tem sido o mais eficaz e o mais adequado. O sistema federalista limita e restringe o poder do soberano, dividindo-o e atribuindo ao governo apenas alguns direitos bem determinados. É o único método de condicionar não só a maioria, mas também o poder do povo". Isto é dito com aprovação, o federalismo tem estas virtualidades: "é o método eficaz para condicionar não só a maioria mas também o poder do povo".
Porque é que o pensamento liberal, ou neoliberal mais em concreto, via durante a guerra, na ideia de federação, o contexto apropriado para o florescimento de uma sociedade liberal? Porque é que Hayek defende a federação, sem referir que está a falar da Europa (mas rapidamente percebemos que é da Europa que ele está a falar), durante a Segunda Guerra Mundial? Porque a federação, política e económica, devia ser um espaço (de integração económica) onde as mercadorias, os capitais e as pessoas circulassem livremente. Ou seja, as três liberdades por onde começam os tratados europeus. E esta liberdade de movimentos tinha como efeito inelutável a restrição daquilo que Hayek designava de "planeamento", uma série de coisas que Hayek não gosta: políticas públicas em geral, política fiscal autónoma, política orçamental, política industrial, política de rendimento e sobretudo políticas sociais. Designa acção pública, designa intervenção do Estado na economia, de alguma forma.
E portanto esta liberdade de movimento de capitais restringiria a capacidade dos Estados, ao nível da nação, de desenvolverem políticas públicas. É fácil ver porquê. Vou dar dois ou três exemplos do Hayek. Imaginem a política fiscal: um Estado da União elege um governo com pendor redistributivo e resolve aumentar as taxas de imposto nos grupos superiores de rendimento. Em contexto de liberdade de circulação de mercadorias, capitais e pessoas, o que esse governo pode esperar é que pessoas ricas pura e simplesmente mudem de residência dentro do espaço da federação e deixem de pagar impostos. Imaginem um governo que decide evitar o encerramento de uns estaleiros e toma uma série de medidas de política industrial protectoras dessa indústria, considerada estratégica. Não terá grande sucesso porque noutro ponto da União haverá estaleiros que conseguem oferecer navios a um preço que arrasa o sector que está a ser protegido. Imaginem mesmo políticas orientadas para a protecção do trabalho infantil... Tornar-se-ia difícil garantir coisas como estas, porque noutro ponto da União haveria possivelmente governos menos empenhados nas causas sociais que tenderiam a oferecer aos capitais condições remuneratórias desse ponto de vista mais favoráveis.
Neste quadro da federação, os governos, mas também os sindicatos e as organizações profissionais, tudo o que é forma de acção colectiva, tenderiam a perder capacidade, tenderiam a perder poder. O que, para Hayek, é o contexto apropriado para uma sociedade de indivíduos e não de organizações colectivas ou de governos interventivos.
O segundo lado da questão é que os poderes do governo nacional, no quadro da federação, não podem ser transferidos para o nível da federação. Isso não é viável no quadro da federação porque a federação não é homogénea do ponto de vista das suas instituições. Os países diferiam muito, tinham diferentes regimes de protecção social, de segurança social. Seria muito difícil haver um acordo, uma conjugação de modelos. E portanto o governo da federação teria o poder negativo de impedir os governos nacionais de estabelecer entraves à livre circulação de mercadorias, de capitais e de bens. E seria incapaz de adquirir o poder positivo de, por exemplo, estabelecer normas comuns no domínio das políticas fiscais, industriais ou das políticas sociais. Resumindo, a federação, neste ideal de Hayek, inviabilizaria o "planeamento". Traduzindo para palavras mais actuais, inviabilizaria a social-democracia ou o socialismo. A zona euro, actualmente, é esta federação do Hayek.»


Excertos da excelente intervenção (a ver na íntegra) de José Castro Caldas, no debate promovido pelo Congresso Democrático das Alternativas a 22 de Janeiro, três dias antes das eleições na Grécia.

Num texto brilhante e certeiro, o Alexandre Abreu já aqui descreveu o que está verdadeiramente em causa na recusa das propostas do governo grego por parte das elites europeias: até se poderia ceder nos juros, nos prazos e eventualmente nos montantes da dívida grega. Até se poderia, como estabeleceu o Syriza, aceitar a extinção da troika. O que não pode ser posto em causa, como assinala o Alexandre, «são os eixos centrais da dominação: a compressão dos salários e pensões, as "reformas estruturais" no mercado de trabalho, o esvaziamento do Estado social, as privatizações». Ou seja, tudo aquilo que possa impedir a preservação e aprofundamento do modelo neoliberal europeu, assente na expansão do domínio das lógicas de mercado e avesso ao tal «planeamento» que Hayek repudia, a par das odiosas estratégias nacionais dos países membros, tendo em vista o seu desenvolvimento e bem-estar.

Nada de novo. Bastará lembrar, como na altura o José Gusmão oportunamente assinalou, as palavras de Olli Rehn, o ex-comissário de Durão Barroso. Confrontado em 2013 com os erros sucessivos dos cenários macroeconómicos desenvolvidos pela troika e pelo governo português, Rehn colocava as coisas nestes termos: «para nós o que é importante é o empenho do governo no prosseguimento, na concretização da agenda de reformas estruturais». Ou lembrar ainda o aviso de Angela Merkel à navegação, no mesmo ano, sobre a necessidade de aprofundar a «federação» e de limitar com eficácia «o poder do povo», em nome dos mesmos «objectivos estruturais»: «os países do euro devem estar preparados para ceder soberania» e «aceitar que a Europa tenha a palavra final em certas áreas».

É precisamente nesta linha que, perante o ímpeto de sensatez que as propostas inscritas no «programa lógico» do governo grego configuram (veja-se a razoabilidade dos quatro pontos do plano que Varoufakis irá apresentar ao eurogrupo), que se inscrevem as recentes afirmações de Passos Coelho, o mais diligente moço de recados da chanceler alemã: «é um abuso usar a Grécia como motivo para repensar a União Europeia». Pois claro, era só o que mais faltava.

2 comentários:

  1. A democracia não é perguntar ao povo o que quer.
    Democracia é o poder do povo escolher entre propostas alternativas.

    Quando os proponentes são demagogos ou simples trapaceiros, a democracia é uma farsa.

    Foi a democracia que elegeu Hitler.
    Porque há-de ser irrecusável o facto de terem elegido Tsipras?

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  2. Federalismo muito pouco Federal e distributivo.

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