quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Direitos Humanos à la carte e o trabalho de mil câmaras de filmar

Quando vejo o unanimismo nos órgãos de comunicação social a condenar a brutalidade do que se passou em Paris, só me lembro de cenas como esta: Margaret Thatcher sobre a greve da fome de Bobby Sands, militante do IRA, em luta pela remoção do Special Category Status.

A linha divisória deve ser sempre a vida humana.

Mas fica este alerta para leituras simplistas, que cavalgam a defesa dos direitos absolutos da Humanidade à 2F e 3F, para logo se esquecerem deles no resto da semana, sobretudo quando são violados em seres humanos tão distantes de nós, como no Médio Oriente, palco vital para entender tanta da violência que, cada vez mais, se sente no nosso "quintal".

Um alerta para quando as forças que hoje chamamos de terroristas podem, um dia, transformar-se em governo (vidé em Israel com Begin) ou mesmo em forças políticas eleitas como na Irlanda. E então estranhamos: "Como foi que isso aconteceu?"


Segundo um jornal Le Monde, um dos intervenientes no ataque ao jornal Charlie Hebdo em Paris radicalizou-se após a intervenção americana no Iraque: "As imagens da intervenção norte-americana e britânica, em Março de 2003, no Iraque, fascininava-os. 'Foi tudo o que viu na televisão, as torturas na prisão de Abu Ghraib, tudo isso, que o motivou', contou durante o processo de 2008, um dos próximos de Chérif Kouachi. Se, por um lado, eles se radicalizam em menos de um ano e procuram chegar ao Iraque, já no tribunal Chérif Kouachi e os seus camaradas aparecem como um grupo amador".

Após uma experiência na Síria, Chérif Kouachi é detido em Paris em 2005.

No ano e meio que passou em prisão, de Janeiro de 2005 a Outubro de 2006, no estabelecimento prisional de Fleury-Mérogis (Essone), Chérif Kouachi conheceu aquele que se tornaria o seu novo mentor: Djamel Behgal. Este homem, que se fez chamar Abu Hamza, cumpre o pena de dez anos de prisão por um projecto de atentado organizado, em 2001, à embaixada dos Estados Unidos em Paris. (...) Encarcerado de novo em Maio de 2010, com base em suspeitas, Chérif Kouachi foi libertado a 11 de Outubro do mesmo ano", ou seja, cinco meses de prisão sem acusação. Ele seria liberado de todas as suspeitas a 26 de julho de 2013.

O artigo continua, numa impressionante recolha de informação, dir-se-ia mesmo um dossier policial, com fotos da cadeia e com transcrições de escutas inclusivé.

E outra nota:

No outro dia, fui ver o Água Prateada, de Wiam Bedirxan e Ossama Mohammed. Uma coisa que me assaltou foi o facto de as imagens relacionadas com seres humanos a ser baleados, maltratados, mortos enfim, não serem inesperadas, nem nos esmurrarem já o estômago. Já vimos cenas iguais, retratadas tantas e tantas vezes em séries televisivas no aconchego do lar - combates, mortes à bala, à faca, por estrangulamento, torturas diversas, por afogamento, com choques eléctricos, química, tudo remedeado com bombas amigas que se sobrepõem no final às bombas inimigas. É sintomático que as pessoas que primeiro se deram conta do assalto ao Charlie Heddo pensassem que se tratava da rodagem de um filme. A realidade ultrapassa a ficção, mas por que será que ficcionamos a realidade até ela nos bater com toda a força?

De tal maneira que as imagens que mais nos tocam no filme Água Prateada são as dos animais estropiados e mutilados na guerra, nos cercos das cidades, nas cidades desfeitas pelos combates e bombardeamentos, enfim, as imagens que nunca foram trazidas para os pequenos écrans lá de casa.

Banalizámos a violência e aceitamos todos os dias as bombas "cirúrgicas" dos nossos governos, como solução e terapia para - dizem-nos e repetem sempre nas análises - mantermos "the western way of life" ("o nosso modo de vida"). E depois estranhamos. E somos todos Charlies Hebdo.

Se calhar, a única forma de entendermos a importância real da vida humana é que tudo seja retratado com imagens filmadas. Ao vivo. Onde quer que seja. Tal como é, quando acontece. Se calhar dessa forma, seja impossível esquecer que o mundo está repleto de Charlies Hebdos nunca homenageados por nós, quando o deveriam ter sido de forma bem mais unânime. Pela importância que têm para a nossa paz.

20 comentários:

  1. "mantermos "the western way of life""

    É uma pena o João Ramos de Almeida não ser mulher para poder experimentar viver uns tempos fora do "western way of life". Só para dar um exemplo.

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  2. Caro anónimo,
    Bem vejo que o seu ódio compreende o dedo que carrega o botão da bomba que cairá algures. E diz-me que é em nome das mulheres que isso acontece? Cuidado com a sua ingenuidade.

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  3. Caro João Ramos de Almeida,

    O "western way of life" tem muitos defeitos e existem problemas, não sou ingénuo. Mas não seja ingénuo e reconheça que, ainda assim, é o melhor (no sentido dos direitos e valores que defende) "way of life" do mundo actual.

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  4. "compreende o dedo que carrega o botão da bomba que cairá algures."
    Eu admiro as suas certezas.
    Há alguns meses atrás, perante as imagens em tempo real de Kobani cercada por forças do "Estado Islâmico", todos lastimavam a inacção dos países ocidentais perante a barbárie anunciada. Onde estão as tropas ocidentais para proteger a população indefesa, clamava-se? Porque é que ninguém carrega no botão das bombas que cairiam no cerco montado pelo "Estado Islâmico"?
    Eu percebo o que quer dizer e reconheço e condeno sem qualquer dificuldade ou reserva mental muitas acções levadas a cabo por países ocidentais (nem preciso de as enumerar). Mas ao contrário de si, não acho que o exemplo que dá seja assim tão claro, e continuo a achar que "the western way of life" ainda é aquele que mais direitos garante aos seus cidadãos (e não só). Por muito que desconverse a propósito do exemplo que dei (condição feminina) tenho a certeza que não ainda assim prefere viver cá. Criticando com toda a liberdade, claro.

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  5. Da interferência até à dominação há uma única norma que as tornam aceites ou recomendadas: visarem, impôr princípios ou modelos que nos são caros.
    Desde lutas de libertação a protectorados, de tudo se podem encontrar exemplos.
    Nesse sem fim de oposições, um único valor tem direito à universalidade: a liberdade de expressão.
    Nele se haveria de fundar, sem exitações, o princípio da unidade na acção, sem notas, apontamentos ou reflexões.
    É o único princípio em que a regra ancestral, "olho por olho, dente por dente" tem irreprovável aplicação.

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  6. Ainda a propósito do "dedo que carrega o botão da bomba que cairá algures", qual acha que deve ser a atitude dos países ocidentais perante acontecimentos destes?

    http://rr.sapo.pt/informacao_detalhe.aspx?did=149574

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  7. todos os dedos carregam em botões, só os manetas têm taras de sabedoria.

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  8. Porventura houve um mal entendido entre o anónimo e autor do "post". Eu também quero manter certas características do "western way of life"; mas há outras que são lastimáveis. Por outro lado,os governos ocidentais frequentemente não defendem para os outros o que acham bom para si; Exemplos há-os às carradas, as mais das vezes porque sai mais barato explorer os outros para manter esses aspectos lastimáveis do "western way of life"; e os que vivem do outro lado não são estúpidos: percebem a hipocrisia e brutalidade desses governos "democráticos". Referências? Sugeria Amin Maalouf.

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  9. Correndo o risco de me desviar do assunto central do seu post, não posso deixar de reflectir mais um bocado sobre a expressão que utilizou:
    "dedo que carrega o botão da bomba que cairá algures"

    Se é verdade que a generalidade da opinião pública "ocidental" (para simplificar) condena intervenções militares no exterior (p. ex., Iraque), também não deixa de ser verdade que em determinadas situações e perante determinados acontecimentos essa mesma opinião pública não deixa criticar a inacção de quem, tendo o poder, nada faz para evitar ou contrariar esses acontecimentos (ex., Kobani, "Estado Islâmico", Boko Haram, ...).
    Só que, mesmo nestes últimos casos, as sociedades ocidentais não estão dispostas a "enviar tropas para o terreno", nem mesmo para defender populações indefesas ou adolescentes raptadas. Daí que a única solução para os governos ocidentais, em muitos casos, só possa mesmo ser "o dedo que carrega o botão da bomba que cairá algures". A pedido das sociedades que representam e sob pressão da opinião pública contra a inacção de quem podem fazer algo de concreto.
    Mais uma vez, a realidade não é a preto e branco.

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  10. Caros,
    Como deverão ter percebido, não estamos divididos em nenhum dos pontos.

    Apenas gosto de chamar a atenção para rápidos unanimismos, que geralmente são feitos em torno de Direiros Universais, e como tal indiscutíveis.

    A intervenção no Iraque - que por acaso instigou aqueles que a polícia procura (como se pode ler no Le Monde) - foi defendida na base de uma mentira, dourada em defesa dos direitos universais dos iraquianos. E sabemos como essa história acabou.

    A intervenção ocidental - que tb faz parte do "nosso modo de vida" - envenenou e turvou durante décadas uma parte do mundo que está na base do que se chama terrorismo. Muitas vezes por alegadas questões estratégicas, que muitas vezes se confundiam com acesso a matérias-primas e lucros de algumas empresas. Mortes em troca de dinheiro.

    Era de todo saudável encontrar uma solução política equilibrada para essa parte do mundo, embora creio que neste tudo seja demasiado complicado e complexo.

    Até por isso penso que a solução nunca poderá estar na ponta de drone que atinge - como se tem visto - muitos "danos colaterais", expressão para quem não tem direitos alguns. Tem de ser encontrada uma solução que esvazie para sempre o radicalismo. Mas para isso tem de se acabar com o radicalismo na forma de intervenção naquela zona. Temos a prova disso também agora e cada vez mais.

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  11. Ah e esqueci-me do último comentário: Como tratar acontecimentos como este.

    Se acontecimentos como bombardeamentos sobre povoações civis fossem tratados como estão a ser tratados os comandos do atentado em Paris, possivelmente concordaria na forma como este caso está a ser tratado. Como um crime civil. Mas não são.

    Não sejamos ingénuos: real politik é o que está a acontecer.
    Doze mortes terão a maior das condenações em Paris, mas 3 mil recentes mortos na Palestina foram legitimadas pelo Ocidente sob o argumento da legítima defesa. E o ódio que, consciente ou inconscientemente, está a ser passado tem um efeito: fechar as sociedades ainda mais, bloquear o diálogo entre culturas, justificar a segurança, justificar maiores orçamentos securitários e até justificar medidas legais securitárias, sob o apanágio da defesa dos Direitos Universais.

    Punição legal igual para crimes iguais, poderia ser um passo para esvaziar o radicalismo. Concordam?

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  12. Um excelente post de João Ramos de Almeida

    Contra a hipocrisia e o coro das hárpias também

    Um excelente e ponderado post.
    Parabéns

    De

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  13. Aí em cima alguém falava nas mulheres.

    Os fundamentalismos são de facto manipulados e são peças dum jogo bem mais complexo e profundo

    "Nos anos 80, no Afeganistão, as mulheres andavam de mini-saia, conduziam, estudavam e levavam uma vida dentro do que se pode considerar a normalidade dita ocidental. Os Estados Unidos financiaram, treinaram e armaram os talibãs e afogaram o país na Idade Média. A exaltação da religião contra as forças do progresso conduziu à desgraça que se conhece e anos mais tarde milhares de trabalhadores norte-americanos pagavam com a própria vida a tragédia das Torres Gémeas. Na Palestina, Israel - um país inventado pelo extremismo sionista - abriu caminho ao reforço de movimentos religiosos como o Hamas para evitar a direcção laica e progressista da luta pela libertação nacional daquele país."
    Bruno Carvalho

    (De)

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  14. Este é o momento de confrontar a União Europeia, a NATO e o governo francês em particular com as suas imensas e determinantes responsabilidades no crescimento de uma nova "jihad" que agora (e uma vez mais) lhes rebenta nas mãos; é tempo de lembrar que em 2012 foram capturados na Síria cerca de duas dezenas de agentes secretos franceses que apoiavam no terreno o "Exército Livre da Síria", uma das facções da "jihad" que destruiu e destrói um dos únicos estados laicos da região; é tempo de lembrar que em Abril de 2013 a União Europeia decidiu comprar às claras petróleo aos "rebeldes" que haviam tomado para si - e para o financiamento da sua "jihad" - poços de petróleo que pertencem na verdade ao povo sírio; é tempo de lembrar que o governo francês foi um dos elementos chave no esforço de guerra da NATO na Líbia - um dos paraísos do novo jihadismo itinerante -, e que boa parte daqueles que hoje ameaçam vidas inocentes em todo o mundo fizeram nesse contexto de guerra a sua formação (para)militar.

    Rui Silva

    (Infelizmente há mais.Muito mais
    De)

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  15. Andre Slim

    Enfim, alguem escreve o que se exige, num ocidente dito civilizado!
    O que aconteceu, nao tem explicacao, tal como o nao teem as infinidades de atos barbaros que se dao todos os dias, em todo mundo.
    Para sermos Charlie, na primeira pagina, teriamos de ter sido tantos outros, em nota de rodape na ultima folha. Duas notas, a verdadeira liberdade de expressao nao e alheia aos direitos humanos.
    A cor das coisas e mais intensa quando observada de perto.

    Lamento a falta de acentos, e demais elementos graficos.

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  16. Tudo serve de pretexto para incensar os actos e os aliados do defunto Império soviético...

    Esses orfãos de um poder que se mascarava de ideal, abandonados às ideias que não vencem, entregam-se à maledicência e à arenga oportunista.

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  17. Jose
    a partir da altura em que usaste a expressão "olho por olho, dente por dente" perdeste toda e qualquer credibilidade...por isso agora bem podes vir com essa lengalenga dos soviéticos e outros primarismos em que os gajos como tu são pródigos (se não pensa como eu é um comuna frustrado)que eu, pelo menos, não ligo pevides...tens que começar a saber distinguir entre um argumento e os dogmas que tens na carola

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  18. «aliados do defunto Império soviético...»

    Quem? Os islamistas?! Pasmo! A idiotia levada ao extremo!

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  19. Um anónimo (9:34) iletrado e um JMSousa que não sabe ler!

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  20. Parece que a incapacidade "literária" de "jose" assenta agora na iletracia de uns e no não saber ler de outros.

    Releve-se de momento tal pedantice, de certa forma característica

    Mas o culto de certa linguagem seminarista ( e outras coisas mais) dá lugar a estes desencontros civilizacionais ( e outras coisas mais)

    De

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