O endividamento tem a maior importância porque pode ser um motor, mas também um travão, da actividade económica. É um motor porque, quando fora do pleno emprego, acresce à procura. Quando eu, consumidor ou empresário, contraio um empréstimo e o utilizo para financiar uma despesa de consumo ou investimento, não estou simplesmente a utilizar as poupanças de outrém, tal como é sugerido pelo entendimento mais simplista (e errado) do sistema bancário. O montante que é creditado na minha conta quando contraio o empréstimo, e que eu utilizo posteriormente para consumir ou investir, não requer qualquer poupança anterior por parte de terceiros - é criado de forma escritural, a partir do nada, pelo banco. Nem sequer requer que o banco disponha de depósitos suficientes para cobrir a fracção legalmente exigida dos empréstimos adicionais concedidos, uma vez que esses mesmos empréstimos se transformam, directa ou indirectamente, nos depósitos que asseguram a sua própria cobertura.
No essencial, é a isto que nos referimos quando falamos de endogeneidade da moeda: a quantidade total de moeda, isto é, dos meios de pagamento (entre os quais os depósitos bancários têm um peso muito maior do que as notas e moedas físicas), é alimentada ou restringida pela própria dinâmica da economia - por outras palavras, é determinada endogenamente por ela. Na formulação mais simples que consigo encontrar, as expectativas de procura geram contracção de dívida, a dívida gera moeda e a moeda gera procura.
Mas como é evidente, este acréscimo de procura assente no motor da dívida está intrinsecamente limitado pela impossibilidade dos consumidores e empresas continuarem indefinidamente a aumentar os seus níveis de endividamento. Quando as dívidas já são tantas que geram receios de insolvência, os devedores receiam contrair mais empréstimos e, pelo contrário, tendem a procurar "desalavancar", ou reduzir as suas dívidas - e os credores, por sua vez, limitam a concessão de crédito adicional. Quando isto acontece de forma generalizada, a dívida acumulada torna-se um travão para a economia, impedindo-a de crescer. E quando este premir do travão ocorre de forma súbita e desordenada, os mecanismos de retroacção entre contracção do crédito, desalavancagem, redução da procura, queda dos preços e falências dão origem a uma recessão.
Há então duas possibilidades. Na primeira, a desalavancagem é feita em queda livre, com escassa intervenção contra-cíclica do sector público. É, no essencial, a história da crise de 1929 e da Grande Depressão dos anos 30. Na segunda, o sector público incorre em défices substanciais, mitigando parcialmente, ao nível da procura, a desalavancagem por parte do sector privado. A economia é pelo menos parcialmente estabilizada à custa de transmutação de parte da dívida privada em dívida pública. É, no essencial, a história da economia japonesa de 1990 em diante, como é também a história da generalidade das economias avançadas a partir de 2007 .
Olhando para a actualidade da economia mundial à luz de tudo isto, há dois aspectos que não podem deixar de causar preocupação. O primeiro é que os níveis totais de endividamento nas economias avançadas, após uma breve contracção em 2008, voltaram a aumentar desde então, concentrando-se sobretudo no sector público dessas mesmas economias - e isto apesar do desempenho económico sofrível. O segundo é que os níveis de endividamento nas economias emergentes (concentrados no sector privado) têm vindo a bater recordes atrás de recordes nos últimos anos: entre 2005 e 2014, por exemplo, triplicaram. A consequência agregada destes dois processos paralelos é que o endividamento total, público e privado, à escala mundial, aumentou de 175% do PIB global em 2007 para cerca de 212% em 2013 .
Não sabemos, pelo menos a priori, qual o nível fatídico de endividamento que despoleta as dinâmicas recessivas. Na verdade, o nível agregado interessa pouco, pois o que faz ruir o castelo de cartas é a ruptura de um único elo mais fraco (como o sub-prime dos EUA, por exemplo), que atinja o seu próprio nível fatídico específico e que tenha suficientes peso e ligações sistémicos. O que sabemos, em contrapartida, é que os sectores da economia global que no final da década passada estavam ainda relativamente pouco endividados e que por isso tiveram o potencial de acomodar a desalavancagem e suster uma grande depressão global - o sector público das economias avançadas e as economias emergentes - deixaram já, ou estão a deixar muito rapidamente, de ter essa capacidade.
Por outras palavras: se o desempenho económico global não foi pior nos últimos anos (e foi com certeza medíocre, especialmente nas economias avançadas), foi em grande medida graças à estabilização contra-cíclica proporcionada pelo sector público e graças à procura oriunda das economias emergentes. Mas, uma vez que ainda não exportamos para Marte, estamos a gastar os últimos cartuchos. Parafraseando Reinhart e Rogoff, da próxima vez vai com certeza ser diferente.
(a minha crónica de 4ª feira passada no Expresso online)
As crises monetárias são uma manifestação da(s) crise(s) capitalista(s) que não se pode compreender à luz da teoria quantitativa da moeda,o endividamento tal como o conhecemos hoje está no centro da crise económica que tem como consequência o desemprego e que se deve à financiarização da economia de que a política monetária se tornou um instrumento ao serviço da especulação financeira que utiliza a moeda para a obtenção de lucros especulativos.
ResponderEliminarCaro Alexandre Abreu:
ResponderEliminarEu sei que aqui no «Ladrões...» este seu texto não causará demasiada azia aos leitores (se exptuarmos um tal José que aqui vem marcar o ponto em nome do Passos Coelho), mas isto é demolidor para a narrativa da exclusiva culpa própria na dívida.
Afinal, aconteceu (está a acontecer) de forma generalizada pelo mundo, o que quer dizer que obedece a outros parâmetros de natureza económica independentes da vontade dos decisores em cada microcosmos nacional.
Cenário 1 - Expectativa de procura . dívida - procura.
ResponderEliminarCenário 2 - Promessa de poder de compra - dívida - procura.
Cenário 3 - Dívida pública - distribuição de benesses - procura.
Cenário 5 - somatório das parcelas de cenários 2 e 3.
Do liberalismo para o cretinismo...
José(zito):
ResponderEliminarE se tivesse um pouco de tino e não insultasse gratuitamente os outros.
Não se enxerga?
Ser tolo têm uma vantagem, nem se tem consciência da tolice.
Manelinho, longe de mim insultar os cretinos. Tenho o maior respeito por todos os portadores de deficiência.
ResponderEliminarJosé(zito):
ResponderEliminarEu passo a vida a aconselhar os tolos para não terem um espelho na parede atrás do monitor do computador.
Têm tendência para ver os outros com quem estão a dialogar através dos comentários à semelhança da imagem que estão a ver.
Faça isso.
Ou então há outra hipótese: dê os seus sofisticados comentários, de profunda análise, a várias pessoas antes de os enviar.
Poupava-se a fazer figuras tristes.
E não nos cansava com a cassete, até parece os tipos do PCP, mesmo antes de começarmos a ler já sabemos o que querem dizer.
Nunca nos surpreendem.
O Manelinho não quer espelho que o interrogue mas sim coral que o acolha.
ResponderEliminarO síndrome da opinião dominante inevitavelmente identifica o possivel com o desejado, mas enquanto dura, a felicidade é garantida.
Lamento atrapalhar mas o espelho não me permite participar nessa farsa.
Tenho alguma pena que este tema tão importante possa sair prejudicado pelo diálogo algo infeliz que discorreu no espaço de comentários do blogue.
ResponderEliminarDeixo o pedido ao Alexandre Abreu que não deixe de aprofundar a questão monetária e a relação entre criação de dinheiro e dívida. É fundamental não só reflectir sobre este problema no sentido estrito como reflectir também sobre os seus muitos impactos no todo da economia. É é igualmente fundamental tornar esta questão mais próxima do domínio público.
Tomo a liberdade de partilhar um texto recente sobre esta questão que publiquei no meu blogue, que deixo como contributo: A grande questão política do nosso tempo.