segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A Sul nada de novo


O ajustamento estrutural em curso no Sul da Europa tem antecedentes directos no que se passou no Sul global na década de 1980. Descubra as diferenças.
Década de 1980

Uma crise da dívida assolava a generalidade das economias do Sul global. Após um período de modernização relativamente bem sucedida ao longo das décadas anteriores, os alicerces do desempenho económico destas economias haviam sido minados por dois factores principais associados à crise estrutural dos anos '70: o aumento do preço dos combustíveis e o arrefecimento da procura global. Neste contexto, porém, a acumulação de excedentes por parte das economias produtoras de petróleo ultrapassara em muito a capacidade de absorção dessas mesmas economias, e esses chamados "petrodólares" haviam sido crescentemente canalizados para o mercado internacional de capitais, aumentando a abundância do crédito e reduzindo o respectivo custo. Este contexto estrutural fora conducente a que numerosos Estados do Sul global recorressem ao endividamento para acomodarem o aumento da factura energética e amortecerem a contracção da procura, de uma forma que parecia racional à luz do custo do crédito.
Em 1981, porém, o chamado "choque Volcker" (o aumento das taxas de juro praticadas pela Reserva Federal norte-americana, então presidida por Paul Volcker, para 21%) provocara uma nova recessão mundial e uma contracção da disponibilidade de crédito a nível global. Dezenas de países do Sul global, fortemente endividados na sequência do processo descrito em cima, não resistiram a mais este choque e, uns após outros, viram-se na iminência da bancarrota. O México foi o primeiro a declarar uma moratória sobre o serviço da dívida, mas muitos outros se seguiram com idênticos problemas de sobre-endividamento.
Chamado a intervir no prosseguimento do seu mandato (o auxílio a países com problemas ao nível da balança de pagamentos), o FMI concedeu empréstimos de emergência a dezenas destes países ao longo da década seguinte, mas fê-los acompanhar por uma muito forte condicionalidade ao nível da política económica, consistente com a ortodoxia económica emergente. Como principais pilares, a contracção dos serviços públicos, a liberalização da actividade económica, a privatização de numerosos activos públicos e a desvalorização cambial.

Na verdade, teria sido possível ultrapassar o desequilíbrio fundamental subjacente a toda esta situação através de uma estratégia de estímulo global, em que o ónus principal recaísse sobre as economias credoras. Não foi esse o caminho prosseguido, porém: a estabilização e reequilíbrio internacionais foram prosseguidos através da contracção adicional das economias deficitárias.
Os resultados foram razoáveis ou sofríveis ao nível da estabilização macroeconómica, negativos ao nível da contenção da dívida e muito negativos ao nível do desempenho económico e das consequências sociais. Ainda hoje, a década de 1980 é conhecida como "a década perdida do desenvolvimento".
Um dos aspectos eventualmente intrigantes em todo este processo consistiu na disponibilidade por parte dos agentes políticos de muitos destes países para colaborarem na implementação de uma estratégia tão danosa. A resposta é relativamente simples: se tal foi politicamente possível, foi porque a liberalização e privatização destas economias serviu uma coligação de interesses tanto externos como internos. Tanto a nível internacional como nos círculos próximos do poder em cada um destes países, foram muitos os que ficaram a ganhar com o processo.
Década de 2010

Uma crise da dívida assola a generalidade das economias do Sul europeu. Após um período de modernização relativamente bem sucedida ao longo das décadas anteriores, os alicerces do desempenho económico destas economias foram gradualmente minados através de três factores principais associados ao processo de integração económica europeia: a perda de competitividade resultante da sobrevalorização cambial, a concorrência acrescida por parte das economias do leste europeu e Ásia Oriental, e a inexistência de mecanismos que permitissem fazer face a essa concorrência acrescida. Neste contexto, porém, a acumulação de excedentes por parte das economias do núcleo central da zona Euro ultrapassou em muito a capacidade de absorção dessas mesmas economias, e esses excedentes foram crescentemente canalizados para o mercado internacional de capitais, aumentando a disponibilidade do crédito e reduzindo o respectivo custo nos países da periferia. Este contexto estrutural foi conducente a que numerosas empresas e famílias do Sul da Europa recorressem ao edividamento para sustentar os seus planos de expansão ou intenções de consumo, o que parecia racional à luz do custo do crédito e das perspectivas de evolução económica.
Em 2007-08, porém, a crise financeira internacional iniciada no mercado sub-prime da habitação dos Estados Unidos provocou uma forte contracção da disponibilidade de crédito a nível global e deu início a um novo período recessivo a nível mundial. Nos países da periferia Sul da zona Euro, a conjugação da contracção da procura internacional com o congelamento do crédito provocou uma recessão especialmente forte e a transmutação do endividamento privado em endividamento público. Uns após outros, estes países viram-se na iminência da bancarrota. A Grécia foi o primeiro onde estes problemas se declararam, mas outros se seguiram com idênticos problemas de sobre-endividamento.
Chamados a intervir, o FMI, o BCE e a Comissão Europeia concederam empréstimos de emergência a vários destes países ao longo dos anos seguinte, mas fizeram-nos acompanhar por uma muito forte condicionalidade ao nível da política económica, consistente com a ortodoxia económica reinante. Como principais pilares, a contracção dos serviços públicos, a liberalização da actividade económica, a privatização de numerosos activos públicos e a pressão directa sobre os salários, também conhecida como desvalorização interna (a desvalorização cambial não era possível por falta de autonomia a esse nível, o que aliás afastava aquela que era, no modelo dos anos '80, a única fonte potencial de estímulo da procura).
Na verdade, teria sido possível ultrapassar o desequilíbrio europeu fundamental subjacente a toda esta situação através de uma estratégia de estímulo europeu, em que o ónus principal recaísse sobre as economias credoras. Não foi esse o caminho prosseguido, porém: a estabilização e reequilíbrio internacionais foram prosseguidos através da contracção adicional das economias deficitárias.
Até agora, os resultados foram razoáveis ou sofríveis ao nível da estabilização macroeconómica, negativos ao nível da contenção da dívida e muito negativos ao nível do desempenho económico e das consequências sociais. E tudo isto ocorre no contexto de uma crise estrutural global que está longe de ter sido ultrapassada.
Quantas décadas perdidas nos aguardam?
(texto publicado originalmente, em 02/07/14, no Expresso online) 

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