terça-feira, 23 de setembro de 2014

A Europa como problema e o princípio da reciprocidade

Um olhar crítico sobre a União Europeia sempre foi um traço característico deste blog. Quando o Ladrões de Bicicletas foi lançado, em Abril de 2007, reinava na sociedade portuguesa um europeísmo pueril. Os sinais de que a UE era cada vez mais parte do problema, e não da solução, eram já evidentes: a economia portuguesa encontrava-se em dificuldades desde o início do século; a "Agenda de Lisboa" – a derradeira esperança de alguma social-democracia europeia para remendar a arquitectura institucional saída de Maastricht – já tinha sido inequivocamente apropriada por uma agenda liberal-conservadora de desregulamentação e privatização; os bloqueios políticos à introdução de mudanças de rumo tinham sido escalpelizados na campanha do referendo francês ao defunto projecto de Constituição Europeia. Ainda assim, em 2007, aos críticos da UE em Portugal – onde se incluem possivelmente todos aqueles que alguma vez passaram por este blog – continuava a estar reservado um estatuto de uma certa marginalidade política e intelectual (incluindo no seio dos partidos em que alguns militavam e militam).

Passados estes anos a situação é bem distinta. Hoje não são só os partidos de esquerda que então se mantinham firmemente europeístas (e anti-eurocépticos) que passaram a questionar o processo de integração europeia e as suas implicações para Portugal. O diagnóstico político e institucional que fazíamos sobre a UE e as possibilidades da sua transformação é hoje partilhado, no fundamental, por intelectuais defensores, de há longa data, de um federalismo europeu – como é o caso de José Medeiros Ferreira, Viriato Soromenho Marques ou Rui Tavares. Hoje, o difícil é encontrar quem acredite que a UE é mais um factor de progresso social no Velho Continente do que um acelerador das dinâmicas da globalização neoliberal.

Curiosamente – mas compreensivelmente – a questão europeia tornou-se um dos principais factores de dissenso entre os autores deste blog. Se há sete anos relevava uma convergência em torno de uma leitura crítica da UE, hoje tornam-se mais salientes as diferenças que temos sobre o que fazer com tal diagnóstico. Há os que defendem uma aposta decidida na recuperação de vastos espaços de soberania nacional; outros preferem o caminho de uma participação crítica no processo de integração, testando a cada passo os limites institucionais da UE; outros ainda apostam numa insubordinação gradual, agnóstica quanto aos desfechos possíveis face às incertezas presentes.

Na verdade, estas divergências não são de hoje – em larga medida, elas estão na base da diversidade de afinidades políticas e/ou partidárias que sempre caracterizou este blog. Se elas são hoje mais claras tal deve-se, pelo menos, a três factores. Primeiro, ocorreram desde 2007 uma crise financeira internacional, uma crise económica mundial e uma crise multidimensional nas periferias da zona euro. Em qualquer uma destas ocasiões, a UE revelou não apenas as suas fragilidades institucionais na resposta à situação, mas também a essência profundamente conservadora do seu projecto. Em segundo lugar, nas próximas eleições legislativas poderá estar em causa a definição de um rumo para Portugal face ao processo de integração europeia – e sempre foi mais fácil concordar nos diagnósticos do que nas soluções. Finalmente, mas não menos importante, o ambiente intelectual mudou. Hoje divergimos em larga medida porque aquilo em que concordávamos – e continuamos a concordar – deixou de ser tabu. Posto noutros termos, hoje divergimos porque vencemos um dos debates intelectuais que empreendemos juntos desde o início.

Ao longo de todos estes anos houve quem muito contribuísse para a mudança do ambiente intelectual em Portugal no que respeita à visão sobre a UE. Mesmo no tempo em que o eurocepticismo estava nas margens do debate público em Portugal, sempre encontrámos em Eduardo Paz Ferreira – professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Presidente do Instituto Europeu – alguém que, através dos debates públicos que promoveu, deu voz e palco às nossas posições. É, assim, por amizade e por um princípio básico de reciprocidade, que celebramos o lançamento do seu livro "Da Europa de Schuman à não Europa de Merkel". Não esperem que todos concordemos com os seus conteúdos. Mas o debate é sempre melhor que o pensamento único.

4 comentários:

  1. E qual é a posição do autor? Defende a recuperação de vastos espaços de soberania nacional, uma participação crítica no processo de integração ou uma "insubordinação gradual, agnóstica quanto aos desfechos possíveis face às incertezas possíveis", seja lá o que for esta última?

    Ou seja, tem posições claras e firmes ou a grande crise internacional e europeia, ao contrário de outros companheiros de blog, o máximo que conseguiu foi levá-lo do europeismo de esquerda ingénuo para posições tíbias, complacentes e de meias-tintas (chamadas de "agnósticas" porque o ridículo ainda não mata) com a forte orientação neo-liberal e "merkeliana" que, depois como antes da crise, continua a formatar a construção europeia?

    ResponderEliminar
  2. Quanto ao futuro da humanidade, sou mesmo agnóstico. O reconhecimento pelo carácter fundamentalmente indeterminado do curso da história costuma fazer mais bem do que mal. Normalmente, são as certezas que matam, muito mais do que o ridículo.

    Tendo em conta que ajudei a escrever isto
    http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2014/03/ainda-sobre-ter-razao-antes-de-tempo.html

    há 17 anos e desde então tenho mantido essencialmente a mesma posição no que fui escrevendo e dizendo, não sei bem onde estão as posições de meias-tintas, complacentes e tíbias. Admito que o anónimo não conheça, mas se assim é deveria dar-se ao trabalho de ler antes de se pronunciar com tanta revolta.

    Por detrás do seu corajoso e determinado anonimato, deve ter, com certeza, posições mais claras e firmes. Nós é que não sabemos quais são.

    ResponderEliminar
  3. Caro R. P. Mamede:
    Este anónimo é «gato escondido com rabo de fora»?
    Quem frequenta o blog já o topa à légua.
    Umas vezes assina com abreviatura, outras é «corajosamente» anónimo.
    Ele esquece-se de que, quem perceber um pouco de textualidade da escrita sabe de quem se trata ao comparar a forma como escreve, as palavras usadas, a construção das frases, a lógica das ideias expressas.
    Há muito «naïve» no mundo, não é?

    ResponderEliminar
  4. Pois não sei quem é esse mesmo anónimo,embora me incomode solenemente as insinuações de manuel silva, como se dotado duma clarividência "suspeita" ou"tola" digamos assim sobre a identificação de tal anónimo.
    Suspeita porque fico intrigado como terá tantas certezas.
    Tola porque se não são certezas, será o quê?

    Em relação ao fundamental do texto, quero aqui, eu , humilde anónimo e remetido ao meu pobre nick ao qual sou tristemente fiel por convicção solene, prestar a minha homenagem e o meu agradecimento ao trabalho e às posições deste blog em geral e obviamente também a Ricardo Paes Mamede.
    Utilizei muitas citações do autor em muitas ocasiões. Concordei com muitas, não subscrevi outras.
    O que é certo é que estamos na mesma caminhada.

    Que o debate continue, aberto e plural

    De

    ResponderEliminar