terça-feira, 24 de junho de 2014

Um país a desfalecer


De modo mais ou menos dissimulado, tem-se assistido a um conjunto de tentativas de branquear a relação entre a austeridade e o abismo demográfico em que o pais mergulhou, nos últimos anos. Maria Cavaco Silva, por exemplo, quando instada a comentar o aumento da emigração, na recente visita dos inquilinos de Belém à China, colocou de lado a subtileza e defendeu que «a emigração sempre existiu, mesmo sem crise», situando esta sentença na romântica visão da «abertura ao mundo como um mundo de oportunidades» (como quem diz, portanto, que «pimenta no rabo do outro para mim é refresco»).

Mas mesmo alguém mais informado e responsável, como Joaquim Azevedo, nomeado pelo governo para presidir à comissão multidisciplinar que entregará, em breve, um conjunto de propostas tendentes a promover a natalidade, não resistiu à tentação de apresentar o abismo demográfico como um fenómeno alheio às políticas seguidas desde 2011. Para o catedrático da Universidade Católica Portuguesa, «o problema da queda demográfica não é consequência da crise, é um fenómeno que tem trinta anos», mesmo que reconheça, logo a seguir, que «não ter emprego, ou ter um emprego precário ou mal remunerado, ou não haver incentivos, incluindo na questão da educação nos três primeiros anos, são questões muitíssimo importantes». A entrevista dada por Joaquim Azevedo ao Público, no início de Abril, merece de resto ser lida na íntegra, pois é muito esclarecedora quanto à capacidade de relativizar (e portanto branquear) os impactos do ajustamento (e do «ir além da troika»), nas dinâmicas demográficas mais recentes.

A evolução dos números é contudo muito clara, demasiado clara. É a partir de 2010 que se regista uma situação demográfica absolutamente inédita na sociedade portuguesa, com os saldos natural e migratório a entrarem, em simultâneo, no negativo, arrastando consigo, para baixo e em ritmo acelerado, os saldos demográficos. Mais: é a partir de 2010 que o saldo natural (diferença entre nascimentos e óbitos) conhece quebras sem paralelo histórico (uma média de -15 mil por ano entre 2011 e 2013, que contrastam com os cerca de -3 mil entre 2008 e 2010 e, mais ainda, com os valores positivos, em média anual, registados entre 1991 e 2007). E se é verdade que o saldo migratório (diferença entre imigrantes e emigrantes) estava já em redução progressiva antes do início do ajustamento (mantendo-se contudo em valores positivos), o ritmo da sua retracção agudiza-se de modo muito significativo a partir de 2010, para o que contribui o incremento exponencial da emigração e o aumento da saída de imigrantes do nosso país. É de facto preciso uma enorme ginástica intelectual para considerar que existe uma espécie de continuidade entre os cerca de -33 mil residentes por ano, em média, registados entre 2011 e 2013, e os saldos positivos obtidos, também em média anual, entre 2008 e 2010 (cerca de +9 mil residentes) e entre 1991 e 2007 (cerca de +27 mil residentes por ano).

É de prever, aliás, que esta ilusória cortina de fumo, que procura mascarar - e dissolver num quadro temporal mais amplo - os brutais impactos demográficos da austeridade (como se a variação recente destes indicadores não fosse mais do que a continuação regular de dinâmicas previamente estabelecidas), possa ter correspondência num conjunto igualmente ilusório de soluções para enfrentar o problema. Isto é, em soluções como as que a referida comissão multidisciplinar tem vindo a sugerir e que, sendo importantes (como a flexibilização dos horários das creches, o aumento do trabalho em part-time, ou os incentivos fiscais, entre outras, no mesmo plano), estão muito longe de ir ao fundo da questão: os salários e os rendimentos das famílias, o emprego e a estabilidade do emprego, o acesso a serviços públicos e a níveis minimamente razoáveis de bem-estar, a par da crucial questão da confiança, em Portugal e no futuro. Ou seja, tudo o que a gloriosa «transformação estrutural» do país, empreendida com denodado afinco pelo governo de Passos Coelho e Paulo Portas (a coberto do memorando da troika), tem vindo, deliberadamente, a esboroar.

7 comentários:

  1. soluções para enfrentar o problema

    Não há problema absolutamente nenhum. Há uma população a decrescer tal como, em todos os anos anteriores, cresceu sem parar. Qual é o mal de que ela agora decresça?

    Quando eu era novo Portugal tinha meio milhão de habitantes a menos do que agora. Não me perturba nada que, quando eu fôr velho, volte a ter.

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  2. A questão não é propriamente a questão que Luís Lavoura levanta.
    Se Lavoura voltasse a ler o texto talvez percebesse que o que é dito e redito, de forma objectiva e documentada, é que há uma relação directa "entre a austeridade e o abismo demográfico", havendo uma tentativa clara e evidente em branquear tal relação.

    A Srª D. Cavaco Silva é um dos exemplos duma figura(inha)apostada neste escamotear da realidade.

    Lavoura seque o filão.E ainda para mais treslê . Nem se apercebe que chuta para o lado?
    E resolve deitar água benta e negar a evidência à custa do seu umbigo, perdão, à custa da sua muito "interessante" experiência pessoal.

    De

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  3. Caro Luis, quando a população cresce, há mais jovens do que reformados, o sistema é sustentável, quando a população decresce os poucos jovens que ficam não chegam para sustentar a despesa com os pais e avós, os impostos sobem, os serviços pioram, toda a economia mirra. É simples, neste sistema económico crescer é a única forma de sobreviver. Claro que o mundo é uma bola e os recurso são finitos. Mas isso é outra história que os economistas ainda não perceberam. É normal, não são cientistas e o exel é bonito assim....

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  4. Caro co-anónimo,

    O que melhor descreveu é um esquema em pirâmide. Também é, razão lhe seja dada, a estrutura de uma segurança social que precisa de facto de ser reformada.

    Como o Luís diz, não há problema nenhum em a população de um país decrescer, agora o que o Luís ignora é esse esquema em pirâmide. Só que o esquema em pirâmide só pesa sobre os ombros da base. É essa base que tem de se preocupar, não o topo. Os do topo, como o Luís, são os que têm as suas contas na Suíça ou na Holanda, e têm regras diferentes. São os Duartes Lima e os Ferreiras do Amaral da vida. A esses tanto lhes dá. Aos outros, enquanto se preocupam em alimentar a pirâmide, não lhes passa pela cabeça como mudar as coisas.

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  5. Anónimos,
    a pirâmide está invertida. Em Portugal os jovens estão desempregados e são sustentados pelos pais. Pra quê fabricar mais crianças se elas não vão ter emprego em Portugal?

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  6. Enfim chegamos a uma questão pertinente, mas que em nada tem eco nas preocupações políticas da coisa: para quê ter filhos.

    Um desafio que coloco regularmente a amigos: explicar-me o problema demográfico sem utilizar a economia.

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  7. Ai Luís Luís, só me vem à cabeça o que aprendi com os meus saudosos Mestres "du Bocage" e "Guerra Junqueiro":

    [A VIDA É FILHA DA PUTA
    A PUTA, É FILHA DA VIDA
    NUNCA VI TANTO FILHO DA PUTA
    NA PUTA DA MINHA VIDA]

    {Um Povo resignado e dois partidos sem Ideias

    Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.
    Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira a falsificação, da violência ao roubo, donde provem que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro. Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País.
    A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.
    Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar.

    Guerra Junqueiro, in 'Pátria (1896)}

    NÃO lhes perdoais Senhor, porque SABEM o que fazem, dizem e escrevem....

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