sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Uma saída limpa?

 

Há algum tempo que o discurso da retoma da economia tomou conta dos media. Com eleições à vista, o governo tudo fez para que assim fosse. As televisões, sem jornalismo independente e capaz, logo assumiram o papel de megafones. Há mesmo quem embandeire em arco apontando o dedo aos que identificaram uma espiral recessiva na economia portuguesa. O que não dizem é que, através da revisão (muito em alta) dos objectivos para o défice orçamental inscritos no Memorando, o insucesso da política de austeridade acabou por ser assumido pela troika. A demissão do ex-ministro das Finanças, sem condições políticas para levar ao paroxismo a austeridade de que é apóstolo, foi uma preciosa válvula de escape que desanuviou alguma tensão em que muitas famílias da classe média se encontravam, o que favoreceu o consumo. As decisões do Tribunal Constitucional vieram reforçar essa distensão, levando a procura interna a dar o seu contributo, aliás indispensável, para uma viragem no andamento da economia.

Assim sendo, no final de 2013 a economia parece ter encontrado um patamar de estabilização a um nível de desemprego e emigração em massa característicos de uma depressão, pese embora o malabarismo das políticas activas de emprego tendo em vista produzir estatísticas que apoiem a propaganda. Neste marasmo permaneceríamos por longos anos caso o governo tivesse aprovado um Orçamento neutro. Porém, recusando-se a aprender com os erros cometidos, através do Orçamento de 2014 o governo e a troika voltaram a atacar com medidas selvagens. Tendo em conta que o Tribunal Constitucional vai voltar a pronunciar-se sobre algumas dessas medidas, há neste momento grande incerteza sobre a escala do contributo da política económica para o relançamento da espiral depressiva.

Entretanto, o alarido que tomou conta dos media sobre o fim do Memorando desvia a atenção do essencial: a decisão tomada há dias pelo Tribunal Constitucional alemão. Questionado sobre o programa do BCE para adquirir, sem limites, as obrigações dos estados da zona euro em crise (OMT), à luz da Constituição alemã, o tribunal disse: "Não, não, não" (Wolfgang Münchau, "Germany's constitutional court has strengthened the eurosceptics", "Financial Times", 9 Fevereiro). É certo que pediu esclarecimentos ao Tribunal de Justiça (TJ) da União Europeia, mas, como Münchau percebeu, fê-lo no espírito de quem pede mais informação a um tribunal de nível inferior. Ou seja, se houver necessidade de uma intervenção do BCE para realizar pela primeira vez uma OMT, "não é seguro que o Bundesbank possa participar". Em boa verdade, se o TJ der cobertura ao BCE, teríamos uma "crise constitucional" pelo facto de "a Constituição alemã frontalmente contradizer uma lei da UE".

Como é fácil perceber, ninguém quer falar disto na televisão. Estando Portugal à espera de uma decisão sobre a forma como se financiará no futuro, ninguém pode admitir que um financiamento através do Mecanismo Europeu de Estabilidade corre o risco de não ter o apoio do BCE nos mercados financeiros, por razões de inconstitucionalidade quanto ao envolvimento do governo alemão nesse processo. Imagine-se o que significa a tomada de consciência pelos operadores financeiros do que está agora em jogo. Nesse dia, o pânico nos mercados faria explodir as taxas de juro da periferia da zona euro.

Talvez com este enquadramento seja possível perceber porque convém afinal que Portugal seja considerado um "caso de sucesso" que nem precisa de recorrer a um programa cautelar. Tudo aponta que tenhamos de nos financiar nos mercados financeiros. Só não tenho a certeza se podemos chamar a isto uma "saída limpa".

(O meu artigo no jornal i)

1 comentário:

  1. «Neste marasmo permaneceríamos por longos anos caso o governo tivesse aprovado um Orçamento neutro.»

    Seria marasmo um défice >5% e à custa de perdões fiscais.

    Quem pagaria por longos anos esse marasmo?

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