quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Um enorme vazio à esquerda


Em muito do que já se escreveu sobre os resultados destas eleições autárquicas sobressai uma intuição crucial: os eleitores estão muito insatisfeitos com as propostas políticas que lhes apresentam. Para lá da natureza local da votação em cada autarquia, há informação agregada que é preciso interpretar se queremos entender a dinâmica política dos nossos dias. De facto, no seu conjunto, os chamados "partidos do arco da governação" perderam cerca de meio milhão de votos enquanto a abstenção e o voto em branco tiveram um forte crescimento.

Mais ainda, o Bloco de Esquerda não só não se implanta localmente como nem sequer recolhe o voto de protesto. Este prefere o PCP, que tem um discurso mais consistente. Por outro lado, as candidaturas extrapartidárias irromperam na cena política com grande vigor. Falou-se muito do Porto e do Funchal, mas a excelente votação do Movimento de Cidadãos por Coimbra não tem menor significado. Ou seja, estas eleições confirmam de forma expressiva algo que já se pressentia em anteriores eleições, que os cidadãos não estão satisfeitos com os principais partidos. Acresce que a nossa crise, a crise da zona euro, vai transformar-se numa ameaça à Constituição da República. Os partidos serão profundamente interpelados sobre o seu posicionamento relativamente à defesa da Constituição e portanto sobre a nossa integração europeia.

Nos próximos meses, em resultado da cegueira ideológica e do medo dos custos políticos, económicos e financeiros que uma mudança de rumo teria para a Alemanha, a estratégia de austeridade e desvalorização interna continuará a ser-nos imposta, restando apenas saber se com maior ou menor intensidade em função da composição do novo governo alemão. Em nome da viabilização do financiamento do país, o PS ficará sujeito a uma enorme pressão para entrar no barco político que se vai afundar. O seu discurso europeísta, clamando por uma UE de transferências que não é viável política e economicamente, ficará entalado entre o descontentamento popular interno e a nova "governação europeia" do visto prévio aos orçamentos nacionais. Por outro lado, se o BE mantiver a actual inconsistência política - combater a austeridade e renegociar a dívida mas ficar no euro -, tornar-se-á residual porque um discurso de crítica "deste euro" em nome de um "euro bom" será insuportável. Já o PCP, se vier a ser mais explícito e afirmativo relativamente à saída do euro, terá condições para crescer, embora em escala limitada, por razões evidentes. Ou seja, a crise está a produzir um enorme vazio à esquerda.

Por razões diversas, que se prendem com a inércia das organizações, quer no plano do poder, quer no das ideias, não é provável que ocorram mudanças significativas até ao final do ano. Apesar de sabermos que a situação é insustentável, quer o governo alemão, quer o nosso governo, quer o PS e o BE, todos vão tentar manter o rumo. Acontece que a situação tende a tornar-se muito instável, em Portugal e noutros países, como já é evidente na Grécia e na Itália.

Num tempo de grande turbulência financeira, social e política como o que se avizinha, o que de mais saudável poderia acontecer à democracia portuguesa seria o aparecimento de um novo partido. Um partido de esquerda, socialista, que assuma a ruptura com o neoliberalismo como condição necessária para que o país se possa desenvolver. Que diga ao país que uma saída do euro, a decidir em momento próprio, comporta sacrifícios, porém temporários e sem comparação com os da situação asfixiante em que nos encontramos. Um partido capaz de formular uma estratégia de transformação democrática do nosso capitalismo periférico, imbuído de um europeísmo realista - sem ilusões federais -, introduziria no espaço público português a lufada de ar fresco por que muita gente desespera.

(O meu artigo no jornal i)

8 comentários:

  1. O combate tem de ser fora da política que se pratica, tem de ser de invenção de uma «politis» em que as pessoas se auto-apoderam do seu espaço próprio de poder, não o delegando, a não ser que essa delegação se exerça com um controlo real e eficaz. A democracia ou será direta ou não será. O que temos atualmente é perigoso porque é o terreno para todas as demagogias, tenham os enfeites ideológicos que tiverem.

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  2. Em suma, Bateira, mais do mesmo...


    De eleição para eleição o número de abstencionistas está a aumentar. Isto, porque um número cada vez maior de pessoas já percebeu que os «nossos representantes eleitos» são, afinal, representantes de outros interesses onde o Dinheiro fala mais alto. Aliás, para que os «nossos representantes» tenham alguma possibilidade de serem eleitos, é sinal de que já foram comprados.




    Os abstencionistas não são, ao contrário do que se diz, uns alheados da política e das decisões que lhes ditam a vida, e que preferem ir para a praia a cumprir o seu dever de cidadania. Alguns sê-lo-ão, mas a esmagadora maioria é gente que deixou de acreditar nos «políticos» e na «democracia representativa».




    Os que votam na «democracia representativa», podem dividir-se nos seguintes grupos:




    1 – Os clubistas, que sempre votaram no partido A e continuarão a votar nesse partido até morrerem, dê lá por onde der.




    2 – Os que votam porque lhes foi ensinado que esse é um direito e um dever do cidadão (e, portanto, acefalamente, vão votar).




    3 - Os que acreditam ideologicamente nos líderes de determinado partido, embora estes depois façam reiteradamente o contrário do que afirmaram nas campanhas eleitorais.




    4 – Gente que espera ganhar um tacho para ele, para o filho ou para a sogra, com a vitória de determinado partido.




    5 – Os que votam sempre útil – sempre no PS ou no PSD (porque os outros pequenitos não têm hipótese). Durante quatro anos ficam lixados com o governo PSD e nas eleições seguintes votam PS. E como têm a memória fraca, durante os quatro anos seguintes ficam lixados com o governo PS e nas eleições seguintes votam PSD. E agem assim ad aeternum, sem perceber que PS e PSD são dois braços de um mesmo Polvo que, ora lhes estende um braço, ora lhes estende outro.

    Há quem, por contraponto à «democracia representativa», anseie por um Homem Providencial, de queixo espetado, que iria meter tudo nos eixos. Olham com nostalgia para o passado (como se este tivesse sido um paraíso) em vez de olharem para o futuro. Encravados entre um presente corrupto e um passado que idealizam (e que foi muitas vezes pior que o presente), esquecem as ferramentas tecnológicas que a ciência nos vai fornecendo a ritmo acelerado.




    Dantes, a informação só chegava às pessoas através dos Media – televisões, jornais, livros e rádios (todos nas mãos dos Poderosos que os utilizam para fazer passar a sua propaganda), e de um limitado círculo de amigos ou de reuniões com colegas. Não havia alternativa.




    Por outro lado, era impraticável, em sociedades com milhões de indivíduos, recolher as opiniões destes sobre todos os assuntos, avaliá-las, trocar ideias, debatê-las e tomar decisões com base nelas. Só um corpo representativo que, de tempos a tempos, recolhesse os votos (informativamente nulos) que supostamente traduziam a vontade popular poderia dar. É neste sistema que assentam todas as «democracias» modernas.




    Hoje, com a Internet, tudo está a mudar. Graças a ela, as pessoas podem comunicar directamente umas com as outras, podem trocar ideias, aprender diretamente das fontes (não passando pelo crivo da censura e da propaganda (das televisões, jornais, livros e rádios), ter acesso a informação mais independente e fidedigna, e podem fazê-lo sempre que o quiserem. A Internet vai ser a grande porta de entrada para a Democracia Direta.

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  3. ... a sua análise não está mal... talvez só um pouco outonal... e do denso nevoeiro já não espera D. Sebastião, mas um novo partido...

    (retive uma boa rase para quem queira avançar com o tal novo partido: "o PCP, se vier a ser mais explícito e afirmativo relativamente à saída do euro, terá condições para crescer, embora em escala limitada, por razões evidentes", e fico a pensar na sua certeza na evidência... ainda não atingi. Problema meu. Paciência!)

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  4. «Já o PCP(...)terá condições para crescer (...). Ou seja, a crise está a produzir um enorme vazio à esquerda». Isto faz sentido?

    «...o que de mais saudável poderia acontecer à democracia portuguesa seria o aparecimento de um novo partido. Um partido de esquerda, socialista, que assuma a ruptura com o neoliberalismo como condição necessária para que o país se possa desenvolver». E o PCP é o quê? Defende o quê?

    «capitalismo periférico, imbuído de um europeísmo realista». Ok, agora é que eu "percebi" tudo!...

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  5. "Um novo Partido" socialista, ou um "Partido novo", é um tema diletante recorrente nos meios intelectuais da Esquerda, com os resultados históricos conhecidos - desde a irrelevante dissidência do Manuel Serra, ainda no PREC, até à aventura pífia do PRD de Eanes...

    Um novo Partido, socialista ou não, não se funda em medidas ou propostas conjunturais como a "saída do Euro".

    As obsessões de teóricos ou especialistas, seja daquilo que for, não chegam para forjar Partidos políticos. Muito menos a "internet" dos Deolindos...

    Haja alguém que leia mais bons livros de História nas Faculdades de Economia. De História de Portugal e da Europa, de preferência.

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  6. Um enorme vazio à Esquerda que ameaça continuar a crescer, ao contrário de certas ilusões ingénuas ou saudosistas que por aqui se passeiam...

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  7. Esse "partido" já existe: é o MAS, do famoso Gil Garcia!

    Mais palavras para quê?

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  8. O monolitismo político já existente na Europa e que teve origem no aparecimento do Euro levou a esta situação política degradante em que vivemos e que se reflecte essencialmente na Europa do Sul

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