1º) A crise das dívidas soberanas decorre da acumulação de dívida externa (pública e privada) em algumas das economias da UE nas últimas duas décadas (e não do descontrolo orçamental ou da ausência de ‘reformas estruturais’).
A versão oficial diz-nos que a crise resulta de práticas orçamentais erradas e da ausência de ‘reformas estruturais’ em alguns países. Mas não é isto que os dados mostram. Entre os países em crise há uns que acumularam mais dívida pública e outros menos, uns que procederam a alterações substanciais das regras laborais e de segurança social e outros nem tanto. O mesmo se passa com os países que têm passado essencialmente ao lado da crise. Mas há uma relação que é clara: os países cujos juros da dívida soberana mais cresceram durante a crise actual foram aqueles que mais dívida externa acumularam desde meados dos anos noventa. É o que nos mostra o primeiro gráfico.
Gráfico 1 – Correlação entre a acumulação da dívida externa e a crise das dívidas soberanas
Fonte: Eurostat e AMECO
Nota: a Posição do Investimento internacional (no eixo horizontal) é uma das medidas mais usadas de dívida externa. Um valor negativo (positivo) significa que os passivos do país face ao exterior são maiores (menores) do que os activos. Quanto mais negativo for o seu valor, maior a dívida externa do país.
Assim sendo, se queremos de perceber a crise europeia temos de perceber por que motivo alguns países acumularam muito mais dívida externa (pública e privada) do que outros. O que nos leva à segunda ideia.
2º) O factor determinante para explicar o crescente endividamento externo de alguns países (e a melhoria da posição externa de outros) é a estrutura produtiva que apresentavam à partida (e não o descontrolo orçamental ou a ausência de ‘reformas estruturais’).
Nos 20 anos que precederam a grande crise internacional as economias da UE foram sujeitas a um conjunto de transformações profundas, grande parte das quais politicamente induzidas, como sejam: a abolição das barreiras alfandegárias no seio da UE, a criação do mercado interno de capitais, a liberalização dos movimentos e actividades financeiros, a crescente centralização das políticas monetária e orçamental, os acordos de comerciais entre a UE e a China (e outras economias emergentes), o alargamento da EU a Leste, a apreciação do euro face ao dólar (a partir de 2003), ou o forte aumento dos preços do petróleo (entre 2002 e 2008). Estas transformações e evoluções aplicaram-se a todos os Estados Membros por igual. No entanto, sendo as estruturas económicas de partida muito diferentes, tais alterações tiveram impactos muito diferenciados. Tendo abdicado dos instrumentos de política fundamentais para gerir esses impactos, os países com estruturas produtivas menos avançadas acumularam muito mais dívida externa (pública e privada) do que os restantes. É isto que mostra o segundo gráfico.
Gráfico 2 – Correlação entre a estrutura produtiva dos países à partida
e a acumulação posterior de dívida externa
Fonte: Eurostat e AMECO
Nota: quanto mais negativa for a Posição do Investimento internacional (aqui no eixo vertical), maior a dívida externa do país em causa.
Note-se que a estrutura produtiva dos países não se transforma substancialmente em poucos anos, por muito rigorosas e acertadas que sejam as políticas públicas prosseguidas.
Conclusão
Não faz sentido afirmar que a crise das dívidas soberanas se deve fundamentalmente aos erros de governação (que existiram, sem dúvida) cometidos nas últimas décadas nos países mais afectados. A crise deve-se à decisão de submeter economias com estruturas muito distintas às mesmas regras e às mesmas políticas. O erro de governação fundamental que pode ser apontado aos governos dos países em crise foi a decisão de participar no processo de integração europeia nos termos em que o fizeram (e que se revelaram desastrosos para as respectivas economias). O erro que lhes será apontado no futuro será o de não aprenderem com a história e prosseguirem pela mesma via.
Nota: o gráfico 1 foi corrigido, na sequência de um comentário de um leitor.
(Uma versão deste post em inglês foi entretanto publicada aqui.)
Estes dois gráficos, se mais não fosse possivel encontrar, são a demonstração evidente, e eu gosto pouco de evidências argumentativas, de que quem nos "levou pela mão" - é assim que costumo definir a coisa - para a U.E., não se precaveu o suficiente e os técnicos do tipo Vitor Constâncio mais não foram que aprendizes de feiticeiro. Depois os práticos da politica do favorecimento e deslocação dos meios. Quando se discutirá tudo isto, de forma séria e desapaixonada no nosso país? Duvido!
ResponderEliminarJosé Luís Moreira dos Santos
Interessante, mas fiquei curioso com um datum - ou com a ausência dele. Onde estáa Irlanda?
ResponderEliminarDesconfio que há mais que uma história por detrás de um fenómeno coincidente.
Não duvido que a política da Europa über alles ou, como dantes se dizia, "temos de estar no comboio da frente" foi a "mãe" de todos os erros de governação.
ResponderEliminarPortugal, Holanda ou Finlândia, por exemplo, são países totalmente diferentes, quer do ponto de vista económico quer do político ou mesmo do cultural. Como é que passou pela cabeça de alguns iluminados de que a mesma política funcionaria para todos?
Pois, onde é que está a Irlanda? Foi conveniente excluí-la dos gráficos por ter estado em crise com juros elevados apesar da sua proporção de uso de tecnologia e conhecimento na economia?
ResponderEliminarCaros Pyros e R,
ResponderEliminaragradeço a vossa análise atenta dos gráficos. Eu não estou no negócio da manipulação de dados. Os gráficos foram construídos com base na informação disponível na base de dados AMECO da Comissão Europeia e no site do Eurostat. Há vários países da UE que não têm informação disponível nos períodos tratados nos gráficos. São eles: Bulgária, Chipre, Eslovénia, Irlanda, Malta e Roménia. Se estiverem em condições de repetir o exercício com outros dados, de modo a incluir mais países ou outros critérios, ficaria agradecido se partilhassem os resultados.
Não estou em condições de comentar ou de fazer melhor (pela escacez de dados, mas sempre vou dizendo que não sendo perfeitamente rigora a sua análise tem que se lhe diga, encontrando-se de certo modo bastante correcta...pois essa mania dos maniacos de atribuir culpas a qq porque tem de existir um culpado, é no minimo ignorante e ridiculo!
ResponderEliminarSim, foi tudo boa aplicação de metal e cimento, já de alcatrão é discutível e de set-aside para queimadas de verão.
ResponderEliminarDois mil milhões gastos em protecção civil de 3 em 3 anos?
Em transportes ineficientes 30 mil milhões antes de acumulados juros?
Só no buraco do terreiro do paço foram?
A minha recente tese de investigação converge no sentido da afirmação do Paes Mamede. Fazendo convergir três matérias que me são gratas pela formação, Economia, Gestão e Estudos Europeus, as conclusões são similares às de Paes Mamede. Duas sub disciplinas permitem inferir estas conclusões: a economia regional e a gestão estratégica e nestas aa falta de convergência estratégica das partes e o fenómeno da polarização de Myrdal.
ResponderEliminarEm qualquer país, em qualquer união política, é normal que os acordos feitos tenham repercussões diferentes sobre diferentes regiões.
ResponderEliminarPor isso é normal que na União Europeia as decisões políticas tenham consequências diferentes para os diferentes países.
O que acontece de diferente na União Europeia é a ausência de outros mecanismos que permitam equilibrar essas consequências diferentes.
A título de comparação, de cada vez que a União Indiana faz um acordo comercial com outro país, as consequências desse acordo são diferentes na Bengala Ocidental e em Goa, estados com estruturas económicas muito diferentes.
Concordo com o diagnóstico mas não com a conclusão. Os governos que por aqui passaram nas últimas décadas optaram obra pública como forma de manter a economia ligada à máquina. Quando se concordou em acabar com os sectores primário e secundário, isso foi o quê senão incúria? E passar as culpas para o directório europeu é não querer assumir responsabilidades. Todos os países tinham (e têm) direito de veto. Mas era mais fácil ganhar eleições com subsídios, essa é que é essa.
ResponderEliminarFliscorno - acabar com o sector primária não foi incúria - foi imposição de tirar quotas de produção aqui para as "dar ali" mais para nporte além de terem enxameado a cabeças de quem se fez ao poder de que população activa de 40% era sinal de país subdesenvolvido (mas agora até temos carne de cavalo inglês)pois ser desenvolvido era tem + e mais evoluída industria e serviços é que era bom- mas desde 1986 com ênfase a partir de 2008 se a PAC rebentou com a agricultura, 2008 rebentou com as agroindustrias e outras industrias da n«maior variabilidade desde a do vidro dos irmãos Stephen (que nacionalidade de nome ??) + da cerâmica + dos texteis etc e, estas eram fá ceis de DESLOCALIZAR porque a TERRA não "mexe" mas ocupa-se com IPs e casinhas para pobrezinhos com a total ausência de sentido de ordenamento dos territórios ++ etc - mas assim importam-se os lixos alimentares dos agroquímicos s trasgénicos - não tarda que até se importe farinha para fazer "pão"
ResponderEliminarA conclusão final é obviamente a de Luís Lavoura. No espaço da UE e do euro agravam-se as assimetrias se não houver instrumentos de reequilíbrio. E em alturas de crise esses mecanismos desaparecem submergidos pelos egoísmos nacionais. Só resta a emigração para o centro e o empobrecimento. É isso que queremos, ser um meio caminho entre a Luisiana e a Florida. Pobre ambição para os filhos dos Albuquerques...
ResponderEliminarHaja gente esclarecida e lúcida que procuram encontrar explicações para os fenómenos económicos sem se submeterem ao pensamento dominante (em geral o pensamento prevalecente no sistema financeiro).
ResponderEliminarEsta análise de Ricardo Mamede é perfeita. Imbatível!
Mas atenção, isso não desculpa os responsáveis pela acumulação da dívida, pois eles sabiam que embora podessem minorar, num dado período, os efeitos das nossas insuficiências, pelo recurso ao financiamento externo, acabaríamos SEMPRE, mais tarde ou mais cedo, por pagar esse excesso. E com "língua de pau". Isto é uma verdade indestrutível quer quando pensamos em termos macro ou em termos microeconómicos.
E assassino de mouras e hindus?
ResponderEliminarRicardo, não estou de modo algum a insinuar que se trata de manipulação. Mas sendo um dos tecnicamente 3 países sob "auxílio" é uma peça importante para uma explicação geral.
ResponderEliminarOutra questão, certamente por "nabice" minha, não estou a encontrar um valor de yields da DP a LP em mercado secundário médio para os anos de 2011 e 2012 coerente com os cerca de 8% de Portugal no gráfico.
Os dados do Eurostat (Long term government bond yields EMU convergence criterion series - monthly data [irt_lt_mcby_m])
deram-me um média aritmética de 10,24% e geométrica de 10,27%.
Os dados do Ameco (Nominal Long Term Interest Rates), menos detalhados, indicaram 10,35%.
Obrigado
Pyros,
ResponderEliminarnão é nabice sua, foi minha. A legenda do gráfico estava incorrecta - o período de análise dos juros é 2010-2012 e não 2011-2012, como erroneamente aparecia. Já alterei o gráfico inicial, aproveitando para corrigir um outro aspecto - a Estónia tinha sido incluída no gráfico incorrectamente, já que para este país a AMECO só tem dados para 2010. As conclusões não se alteram de todo com estas alterações. Em qualquer caso, agradeço a sua observação.
Não concordo com as conclusões porque de alguma forma desvalorizam o papel que os governantes e a sociedade em geral tiveram ao longo dos últimos anos.
ResponderEliminarNuma linguagem clara, a crise deve-se a uma profunda falta de valores éticos. O imoral passou a normal, o dinheiro fácil, viver sem esforço e sem trabalho.
A democracia foi subvertida para servir os capitalistas e os preguiçosos em vez dos trabalhadores. A justiça está armadilhada para proteger os poderosos.
Em linguagem mais simples diria que:
Nós elegemos. Eles para serem eleitos têm que agradar à maioria. Para agradar têm que dar cada vez mais. Para dar alguém têm que pagar. Como pagar também não agrada. Que paguem as futuras gerações.
Não faz sentido afirmar que a crise das dívidas soberanas se deve fundamentalmente aos erros de governação (que existiram, sem dúvida) cometidos nas últimas décadas nos países mais afectados. A crise deve-se à decisão de submeter economias com estruturas muito distintas às mesmas regras e às mesmas políticas. O erro de governação fundamental que pode ser apontado aos governos dos países em crise foi a decisão de participar no processo de integração europeia nos termos em que o fizeram (e que se revelaram desastrosos para as respectivas economias). O erro que lhes será apontado no futuro será o de não aprenderem com a história e prosseguirem pela mesma via.
ResponderEliminarNonsense.
As evidências estatísticas que apresenta não permitem tirar essa conclusão.
Com efeito, falta a análise da repartição gastos públicos/gastos privados e a natureza dos gastos, o peso relativo do crédito público vs crédito privado.
Analisando os gráficos, pode-se facilmente tirar outras conclusões que rebatem as suas:
- Graf. 1: Só por si não pode tirar essa conclusão, ignorando o mercado de financeiro. Necessita juntar o rating de cada país, que dá o valor da componente risco no preço. Também pode correlacionar o rating com o endividamento face ao PIB e, já agora, a taxa de crescimento do PIB nos últimos 5 anos. Vai ver que saem outras conclusões…
- Graf 2: Não pode tirar essa conclusão só com esse gráfico. Por exemplo, a percentagem de indústrias tecnologicamente mais avançadas está correlacionada com o nível de escolaridade da população. Então nesse caso, teria de tirar como conclusão que a dívida externa está correlacionada com o nível de escolaridade da população.
Não conheço a natureza dos gastos públicos e privados dos outros países, mas os portugueses reflectem exactamente o porquê do endividamente externo.
Relativamente ao endividamente público, ele resulta efectivamente da ausência de possibilidade de desvalorização cambial para financiar o deficit, que é resultante de políticas erradas de governação, pois os sucessivos governos foram alimentando gastos públicos desnecessariamente superiores às receitas. Exemplos não faltam nestes anos todos de euforia de dinheiro barato e crédito fácil.
A participação no Euro só foi errada porque as políticas governativas seguidas foram erradas: gastos demasiado elevados face à receita fiscal. No caso privado foi devido a um acesso demasiado fácil e barato a financiamento. Ponto!
Faltou dizer que somos o povo mais estúpido e inculto da Europa ocidental - quem tiver dúvidas leia os comentários acima.
ResponderEliminar"Caros Pyros e R,
ResponderEliminaragradeço a vossa análise atenta dos gráficos. Eu não estou no negócio da manipulação de dados. Os gráficos foram construídos com base na informação disponível na base de dados AMECO da Comissão Europeia e no site do Eurostat. Há vários países da UE que não têm informação disponível nos períodos tratados nos gráficos. São eles: Bulgária, Chipre, Eslovénia, Irlanda, Malta e Roménia. Se estiverem em condições de repetir o exercício com outros dados, de modo a incluir mais países ou outros critérios, ficaria agradecido se partilhassem os resultados."
Portanto, faltam-lhe dados de vários países, entre os quais países bastante com papéis principais na crise actual, mas faz o "estudo" e tira as conclusões na mesma. E os outros que provem que está errado. Uma grande lógica que por aqui vai.
Caro Jorge Estevão
ResponderEliminarEmbora concorde substancialmente com o que conclui, gostaria de apontar uma questão a priori: se se obtiver os dados do défice público, ou do endividamento público externo, provavelemnte estaremos a olhar para valores fortemente manipulados (se quiser "contabilidade criativa", consequentemente com uma capacidade de explicação da crise muito baixa. As PPPs, por exemplo, apareceram como dívida privada externa, ao serem "recicladas" via sistema financeiro nacional.
Outra questão é o gordo G quando se analisa o crescimento do PIB nacional.
Finalmente, os juros eram baixos e o dinheiro abundante, não porque necessariamente se achasse que as economias por detrás eram sólidas, mas porque havia a infundada percepção que os alemães/BCE assegurariam a coisa e nunca deixariam que uma dívida pública de um país do euro entrasse em default.
E não podemos, de forma alguma, desculpar os erros de política dos últimos 20 anos em Portugal. Mas mais qeu um caso de política, temo que o nosso seja um caso de polícia...
Errata.
ResponderEliminarNão faz sentido dizer que a dívida externa NÃO se deve a políticas governativas erradas... Claro. As minhas desculpas
caro ricardo, correlação não implica causalidade.
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