segunda-feira, 7 de janeiro de 2013
A máquina
A minha coluna de opinião no Diário Económico de hoje:
A trama de “Na colónia penal”, de F. Kafka, gira em torno de uma máquina, operada com zelo burocrático, que executa os condenados de um modo especialmente sádico: inscrevendo-lhes no corpo, ao longo de doze horas, o mandamento que infringiram. O último executado é o próprio executor-chefe: imola-se voluntariamente, por amor à máquina, quando confrontado com a crescente contestação face à desumanidade do método.
É uma metáfora apropriada para aquilo que, a nível europeu, as elites alemãs criaram a partir de três elementos principais: um BCE à imagem do Bundesbank e por este controlado; a consagração nos tratados europeus dos princípios do ordoliberalismo (a variante alemã, precoce e mais corporativista, do neoliberalismo); e a compressão salarial levada a cabo na última década na própria Alemanha. O resultado: uma máquina neo-mercantilista, geradora de enormes excedentes comerciais na Alemanha a par de défices comerciais e endividamento na periferia europeia, que condena esta última ao declínio inexorável.
Na Alemanha, o pensamento ordoliberal não está confinado à CDU de Merkel. É uma componente tão central do modelo económico alemão no pós-guerra que a sua hegemonia abarca igualmente o FDP, o SPD e até os Verdes. Obviamente, não é um modelo generalizável (os excedentes de uns são sempre défices de outros), mas isso não impede este pensamento de dominar a política alemã de tal forma que as eleições de 2013 serão, face aos tempos da crise europeia, totalmente irrelevantes.
Indiferentes à contestação crescente, as elites alemãs e europeias continuarão a operar zelosamente a máquina mesmo quando ela se virar contra os executores - neste caso, através da recessão na própria Alemanha induzida pelo colapso das periferias. A máquina kafkiana é imparável uma vez iniciada e só se detém quando, no final do conto, todo o aparelho se desmorona com estrondo. Assim será com o Euro, independentemente das eleições alemãs e do indizível sofrimento inútil entretanto originado.
Caro Alexandre,
ResponderEliminarEu fui um dos que gravou a sua intervenção na SIC Notícias, no Opinião Pública, e que o colocou no Youtube. Considerei-a uma excelente intervenção e colocou o dedo na ferida ao dizer que os membros do Governo que regulam as nossas finanças nada têm de ingénuos e que, portanto, são uns vigaristas.
Mas não pense que são as elites alemãs que controlam a finança europeia. Como já dizia Henry Ford, nos anos vinte:
Existe no mundo de hoje, ao que tudo indica, uma força financeira centralizada operada por meia dúzia de homens que está a levar a cabo um jogo gigantesco e secretamente organizado, tendo o mundo como tabuleiro e o controlo universal como aposta.
Hoje ninguém acredita que a finança seja nacional nem ninguém acredita que a finança internacional esteja em competição. Existe tanta concordância nas políticas das principais instituições bancárias de cada país como existe nas várias secções de uma empresa – e pela mesma razão, são operadas pelas mesmos poderes e com os mesmos objetivos.
Veremos se nao descamba em guerras .
ResponderEliminarEu aprecio bastante as suas análises económicas, mas, se não se importa eu gostaria de saber se a Irlanda já pagou a sua dívida, uma vez que Miguel Beleza acabou de o afirmar na SIC, ou seja, que a Irlanda já pagou a sua dívida e está em crescimento.
ResponderEliminarE se é verdade, porque eles não para os mercados e expulsam a Troika e o FMI para recuperar a sua soberania.
A Europa do Sul está a ser vítima do capitalismo financeiro internacional que tem como principais leaders o imperialismo alemão e norte- americano com o auxílio de alguns governos nacionais sendo dos quatro países do sul ( Espanha, Portugal, Grécia e Itália )o mais fiel de todos o português
ResponderEliminarUma visão complementar?
ResponderEliminarhttp://www.guardian.co.uk/commentisfree/2013/jan/07/germany-not-profiting-eurozone-export-boom?INTCMP=SRCH
Obrigado, caro Diogo.
ResponderEliminarCompreendo o seu ponto de vista, mas divirjo em vários aspectos: a meu ver, existem, dependendo das circunstâncias, tanto convergências como rivalidades entre diferentes capitalistas (e entre diferentes fracções do capital). Por outro lado, não acho que seja inteiramente verdade que o capital não tem pátria, pois há uma articulação/integração muito significativa, em cada estado, entre o poder político e o capital (por exemplo, o que foram as guerras mundiais senão choques de imperialismos, e o que é o imperialismo senão a expansão territorial do capital?). Obviamente, isto não impede que os interesses das elites de diferentes estados sejam muitas vezes convergentes e que elas se articulem de forma mais explícita ou mais velada, nomeadamente contra os interesses dos trabalhadores e classes populares.
Caro Anónimo das 11:50,
Desconheço as declarações de Miguel Beleza, mas o que lhe posso dizer é que a dívida pública irlandesa continua a crescer, correspondendo actualmente a cerca de 120% do PIB. Quanto ao produto, a previsão para 2013 é de crescimento moderado em termos de PIB e de recessão ligeira em termos de PNB, tanto quanto sei, mas em todo o caso ambos continuam muitíssimo abaixo do seu nível de 2007 (a quebra acumulada do PIB irlandês entre 2007 e 2010 foi de cerca de 15%).
Cumprimentos.
Caro Alexandre, que rivalidades são essas entre fracções do capital?
ResponderEliminar«há uma articulação/integração muito significativa, em cada estado, entre o poder político e o capital»
Essa integração não passa de uma total submissão canina dos políticos a uma elite financeira mundial infinitamente mais poderosa.
Cito mais uma vez Henry Ford (1920):
Certamente, as razões económicas já não conseguem explicar as condições em que o mundo se encontra hoje em dia. Nem sequer a explicação usual da "crueldade do capital". O capital tem-se esforçado como nunca para ir ao encontro das exigências do trabalho, e o trabalho chegou ao extremo de obrigar o capital a novas concessões – mas qual é a vantagem para cada um deles? O trabalho tem até agora acreditado que o capital era o céu por cima dele, e tem feito o céu recuar, mas vejam, existe um céu ainda mais alto que nem o capital nem o trabalho se deram conta nas suas lutas um com o outro. Esse céu ainda não recuou até agora.
Aquilo a que chamamos capital aqui na América é normalmente dinheiro usado na produção, e referimo-nos de forma errada ao fabricante, ao gerente do trabalho, ao fornecedor de ferramentas e empregos – referimo-nos a ele como o “capitalista”. Mas não. Ele não é o capitalista no verdadeiro sentido do termo. Porque, ele próprio tem de ir ao capitalista pedir o dinheiro que precisa para financiar os seus projectos. Existe um poder acima dele – um poder que o trata muito mais duramente e o controla de uma maneira mais implacável que ele alguma vez se atreveria a fazer com o trabalho. Essa, na verdade, é uma das tragédias dos nossos tempos, que o "trabalho" e o "capital" lutem um com o outro, quando as condições contra as quais cada um deles protesta, e com as quais cada um deles sofre, não está ao seu alcance o poder para o remediar, a não ser que arranjassem uma forma de arrancar à força o controlo mundial de um grupo de financeiros internacionais que forjam e controlam estas condições.
Existe um super-capitalismo que é totalmente sustentado pela ficção de que o ouro é riqueza. Existe um super-governo que não é aliado de governo nenhum, que é independente de todos eles, e que, no entanto, tem as suas mãos em todos eles. [...] Há uma convicção crescente nos homens de todo o mundo de que a questão laboral, a questão dos salários e a questão da terra não pode ser solucionada antes deste assunto de um governo super-capitalista internacional estar resolvido.
Nao quero ser pessimista, mas o caminho a que assistimos conduz a uma crescente concorrência capitalista entre a Europa, US e Ásia. Todos sabemos geralmente como é que isto acaba.
ResponderEliminarCaro Diogo, comecei há pouco tempo a dar as minhas voltinhas de bicicleta e acho os seus comentários neste tópico interessantes.
ResponderEliminarNo entanto quando diz que 'que o "trabalho" e o "capital" lutem um com o outro, quando as condições contra as quais cada um deles protesta, e com as quais cada um deles sofre, não está ao seu alcance o poder para o remediar, a não ser que arranjassem uma forma de arrancar à força o controlo mundial de um grupo de financeiros internacionais que forjam e controlam estas condições', parece-me que ignora que esse grupo de financeiros consubstancia aquilo a que chama capital e que esse mesmo capital vive daquilo a que chama trabalho.
De resto concordo que hoje em dia estamos muito para lá do "padrao-ouro". Aliás, haverá no mundo ouro (amarelo ou negro) que sustente dívidas de milhares de milhoes de euros/dólares/libras/... ?
(Um parêntises. O DE sempre me pareceu funcionar como ponta de lança da política neoliberal, pretendendo influenciar através de uma comunicação social filtrada, almejando voos mais altos, de controlo e poder. Aliás, é propriedade da Ongoing, de quem se sabia ter ligações ao poder político e às secretas do “amigo” Relvas.
ResponderEliminarChegados aqui, este artigo do Alexandre acaba por ser um oásis num tal meio de spin doctors…)
A política da Alemanha (o super-governo?) está efectivamente a provocar a desagregação da Europa, e só um lambe-botas como o Barroso é que acha que “Portugal não está a perceber a oportunidade que a crise oferece”…
Correcção: parênteses.
ResponderEliminarR.B. NorTør «parece-me que ignora que esse grupo de financeiros consubstancia aquilo a que chama capital e que esse mesmo capital vive daquilo a que chama trabalho»
ResponderEliminarDiogo: Henry Ford faz uma distinção claríssima entre o capital dos industriais, dos empresários e dos comerciantes, e o CAPITAL daqueles que controlam a criação, existência, circulação e a destruição do dinheiro. Pode crer que a diferença de poderes entre estes dois tipos de capitalista é abissal.
R.B. NorTør disse... «De resto concordo que hoje em dia estamos muito para lá do "padrao-ouro"»
Diogo: Henry Ford quis dizer que o dinheiro é apenas um meio de troca sem qualquer valor intrínseco. Ele fala em ouro porque em 1920 o dinheiro ainda era remível em ouro.
Diogo,
ResponderEliminarObrigado pelo primeiro parágrafo. Gostei particularmente da fonte pois quando tenho discussoes sobre austeridade também é a minha fonte! Para lá disso parece-me que a bater nas conclusoes tinha de bater no Ford e, como se diz, nao vale a pena bater em mortos.
Obrigado pela ressalva no entanto.
Quanto à segunda, a citaçao só reforça a minha concordância.