Na apresentação dos resultados da mais recente avaliação da troika, Vítor Gaspar deu o mote: «teremos de decidir qual o modelo de Estado que queremos e como o atingir de forma economicamente sustentável», aludindo à necessidade de uma poupança permanente de 4 mil milhões de euros nas funções sociais do Estado. Como bom número dois do governo, seguiu-se-lhe Passos Coelho, que anunciou aos deputados da maioria a necessidade de «uma espécie de refundação do nosso programa de ajustamento», isto é, de uma «refundação do Estado Social». Por último, para selar bem a ideia, veio a sentença de Abebe Selassie: «cabe à sociedade portuguesa decidir que nível de protecção social deseja ter, que nível de impostos e qual o equilíbrio entre estas duas dimensões. (...) O país não pode ter desequilíbrios como teve no passado por causa da diferença entre despesa e receita» (sublinhado meu).
Estas declarações ilustram, sem margem para equívocos, o nascimento de uma nova fraude, tendo em vista substituir a estafada tese das gorduras do Estado Social, que a visível degradação dos serviços públicos demonstrou não ter qualquer espécie de fundamento. Esgotada perante a opinião pública, pretende-se assim que essa tese das gorduras dê agora lugar à noção de que o país tem um Estado Social desmesurado, supostamente responsável pelo insustentável esforço fiscal a que se encontram sujeitos os contribuintes portugueses. A ideia é simples: se querem passar a ter menos impostos, é preciso «refundar» (cortar e contrair) as funções sociais do Estado.
1. Como é óbvio, os números desmentem esta tese. Se considerarmos que a dimensão financeira das funções sociais do Estado traduz o grau de afectação da riqueza produzida por um país aos sistemas públicos de educação, saúde e protecção social, verificamos (como mostra o gráfico lá em cima, divulgado pelo Público no passado dia 30, a partir de dados da Comissão Europeia) que esse grau de afectação de recursos é, em Portugal, inferior à média da Zona Euro. Não temos, nem nunca tivemos, um Estado Social desmesurado, mas sim, comparativamente, um Estado Social deficitário.
2. Uma análise da evolução recente (1999-2007) das receitas fiscais e das despesas sociais (DGO) mostra, por outro lado, que até ao eclodir da crise financeira de 2008, o financiamento do Estado Social significava, em média, cerca de 67% das receitas fiscais. É pois com os impactos da crise na economia (perda de receitas e aumento de despesa com subsídios de desemprego e outras prestações sociais), que o Estado Social passa a significar, conjunturalmente, cerca de 80% das receitas. Contudo, entre 2010 e 2011 as despesas sociais voltam a cair para os 70%, em resultado dos cortes nos salários e pensões, educação, saúde e protecção social, por um lado, e do aumento de impostos, por outro. Isto é, a dita «refundação do Estado Social» não é um projecto novo, para começar a aplicar em 2013. Já teve obviamente início e trata-se apenas de o aprofundar.
3. Por outro lado, a evolução das receitas fiscais e das despesas sociais entre 2010 e 2011, com as primeiras a aumentar e as segundas a contrair, prosseguiu em 2012 e será reforçada em 2013. O que quer dizer que a ideia de que «é preciso cortar no Estado Social para reduzir o esforço fiscal» é demonstradamente falsa. Os portugueses passarão a ter um Estado Social ainda mais anémico e insuficiente (num momento em que dele mais precisam), sem que tal se traduza num alívio da carga fiscal. Porquê? Porque o anunciado desmantelamento das funções sociais do Estado e o aumento de impostos não têm outro objectivo que não o de alimentar o monstro da dívida. É aliás uma pena que, na entrevista da semana passada, Judite de Sousa não tenha confrontado o primeiro-ministro com esta evidente contradição. Como pode Passos Coelho dizer que o corte de 4 mil milhões de euros visa o alívio do esforço fiscal e, simultaneamente, anunciar que este esforço se vai manter e até provavelmente acentuar em 2013 e 2014?
Mas porque razões o peso das receitas fiscais do IRS no pib são inferiores à média da UE , quando as taxas são elevadas?
ResponderEliminarExcelente artigo, até o partilhei.
ResponderEliminarMas quero perguntar ao autor se tem a certeza que o gráfico do Público se refere às despesas com educação, saúde e protecção social? É que por "benefícios sociais" eu entendo apenas proteção social. Mas pode ser falha minha...
Caro Ricardo Reis,
ResponderEliminarPor benefícios sociais, no gráfico do Público, entende-se o total de gastos em educação, saúde, segurança social e demais áreas do Estado Social (incluíndo os pagamentos de serviços prestados por privados, como por exemplo os pagamentos no âmbito da ADSE).