«Há cada vez mais velhos abandonados nos hospitais. Há cada vez mais crianças abandonadas nos hospitais. Há cada vez mais animais abandonados. Há cada vez mais meninos que vão para a escola sem terem tomado o pequeno-almoço. Há cada vez mais pessoas a ter de entregar a casa ao banco por não conseguirem pagar a prestação. Há cada vez mais gente desempregada. Há cada vez mais gente a alimentar-se de papas. Há cada vez mais gente a levar um tupperware com comida para o emprego. Há cada vez mais restaurantes a fechar as portas. Há cada vez mais pessoas a fumar tabaco de enrolar. Há cada vez mais pessoas a pedir esmola nas ruas. Há cada vez mais pessoas a recorrer às Misericórdias e ao Banco Alimentar contra a Fome. Há cada vez mais pessoas a não tratar dos dentes. Há cada vez mais pessoas a não ir ao médico. Há cada vez mais casos de tuberculose. Há cada vez mais casos de tosse convulsa. Há cada vez mais casos de dengue na Madeira. Há cada vez mais pessoas a deixar de comprar jornais e revistas. Há cada vez mais pessoas a andar de transportes públicos. Há cada vez mais pessoas a emigrar.»
Nicolau Santos, «O país onde há cada vez mais de tudo» (Expresso)
O INE divulgou há dias dados definitivos dos Censos de 2011. Em muitos aspectos, porém, Portugal já terá mudado mais, no espaço de um ano, do que durante a década que separa este apuramento censitário daquele que o antecedeu. O retrato do país que a crónica de Nicolau Santos estabelece não cai do céu: é construído com notícias que vão surgindo e que - como peças de um puzzle macabro - vão desvelando a tragédia social em que estamos cada vez mais atolados.
Curiosamente, esta percepção da degradação das condições de vida dos portugueses dificilmente se obtém no portal que prometia dar a «conhecer a crise», patrocinado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos e entregue ao sociólogo António Barreto, um dos profetas levianos da necessidade de «refundação do Estado Social». Apostado na simples compilação de dados estatísticos, o «portal do pingo doce» limita-se a estabelecer um retrato esquálido, que se auto-aprisiona no conjunto de variáveis previamente seleccionadas e que, por isso, é insensível a muitos dos efeitos sociais concretos que a austeridade tem desencadeado.
Tempos estranhos estes, em que um sociólogo se refugia na frieza dos números para dissimular os contornos da crise social que o país atravessa e em que um economista lúcido dispensa sabiamente o linguajar opaco e traiçoeiro das análises quantitativas para melhor sentir, e poder perceber, o que mudou na vida concreta das pessoas. E, como se não bastasse, perante os sinais da devastação económica e do sofrimento inútil, ainda temos Cavaco Silva, o presidente da república que tenta disfarçar a sua incompetência, mediocridade e irresponsabilidade política com graçolas pueris sobre o silêncio cúmplice em que se tem acobardado.
Tenho pena que o António Barreto fique com os louros de algo que se resume a colocar dados, que o INE produziu e envia para serem colocados no portal. As pessoas que controlam o portal não produzem qualquer dado estatístico. Pena que ninguém fale.
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