Ao assinar o Memorando de entendimento para obter o financiamento que lhe permitiria satisfazer todos os compromissos financeiros, Portugal estava a sujeitar-se a um programa de ajustamento estrutural idêntico ao de muitos países de África, da América Latina, da Ásia e até da Rússia. O currículo do FMI é um verdadeiro desastre no que toca às políticas de ajustamento que impôs, a ponto de diversos países (destaque para Malásia, Rússia e Argentina) se verem forçados a romper com ele para, com políticas diferentes, finalmente porem as suas economias a crescer, criar emprego e desendividar-se. Com uma diferença crucial: esses países tinham uma moeda própria, embora no caso da Argentina com uma paridade fixa e irrevogável com o dólar. Já agora, desmentindo a narrativa posta a correr pelos comentadores neoliberais acerca do caso da Argentina, importa recordar um facto central: no segundo trimestre após a ruptura com o dólar (Janeiro de 2002), a economia argentina retomou o crescimento. Seis anos depois tinha acumulado 63% de crescimento do produto, deixando para trás três anos e meio de recessão e a desastrosa política de “desvalorização interna” que bem conhecemos.
Guiados por um governo devoto do neoliberalismo em versão radical, ao fim de um ano e meio estamos mais conscientes de que entrámos numa espiral idêntica à da Grécia. Sabíamos que, ao contrário dos anteriores contratos com o FMI, desta vez não poderíamos contar com a desvalorização, e também sabíamos que a “austeridade expansionista” nunca passou de um mito porque na verdade a desvalorização sempre fez parte do pacote das políticas nos países apontados como exemplo. Por isso estava escrito nas estrelas que a execução orçamental de 2012 ia ser um fiasco, como será a a de 2013, embora agora o fiasco seja proclamado aos quatro ventos por muita gente que está bem na vida, sobretudo porque agora também vão ter de pagar algum… para nada.
A UE conhece esta dinâmica mas não muda a política porque o liberalismo alemão (ordoliberalismo) não só está inscrito nos tratados, como é ideologicamente hegemónico na UE. Os sociais-democratas alemães e os socialistas franceses também defendem que os estados devem financiar-se exclusivamente nos mercados financeiros. Os portugueses, tal como os restantes povos do Sul da Europa, pensavam que tinham aderido a uma comunidade de estados solidários e que, integrando a moeda única, poderiam prosperar saudavelmente (sem endividamento excessivo) no seio de uma União cada vez mais integrada também do ponto de vista dos direitos sociais. Enganaram-se, porque embarcaram numa aventura que tinha todos os ingredientes para acabar mal. De facto, não há moeda sem estado, pelo que, ou a UE cria rapidamente um estado europeu federal, o que implica impostos e dívida europeus e transferências de recursos para os estados mais pobres, ou esta zona euro acabará, pelo menos para os seus membros menos desenvolvidos.
A Alemanha fez a sua escolha. As exigências serão implacáveis até que o nosso país, destroçado como a Grécia, finalmente desista. Por isso fechou os olhos à (inevitável) derrapagem do Orçamento português. O preço da benevolência foi agora revelado: em 2013 dar-se-á início à destruição do modesto Estado-providência que a custo fomos construindo segundo os princípios da Constituição de 1976.
Chegados a esta encruzilhada, já não podemos adiar a escolha. Desmantelamos o Estado-providência a pretexto de sanear as contas públicas após o que, já sem financiamento europeu, acabaremos por deixar o euro. Ou assumimos que chegou a hora de dizer basta!, recuperamos a soberania sobre a nossa moeda e reestruturamos a dívida pública.
(O meu artigo de ontem no jornal i)
(continuação do comentário anterior)
ResponderEliminarO quarto erro reporta à era socrática, a que alguns, em tom pejorativo, chamam socretina. Se Portugal, em 2008, tivesse moeda própria, a desvalorização da moeda teria evitado parte do endividamento e a subsequente campanha especulativa. O aumento das exportações, por esta via, permitiria saldos positivos na balança comercial e na balança de pagamentos, que sustentariam a dívida pública e o seu serviço.
Se tivesse havido visão na análise e rapidez na tomada de decisões, quando, em 2008, o mundo acordou para a derrocada dos bancos dos EUA, Portugal teria sido subtraído aos enormes e humilhantes sacrifícios, que estão, hoje, a ser-lhe impostos. Foi esse o momento em que se deveria ter questionado a nossa presença no seleto clube do euro e de ter feito uma reforma profunda do Estado, no sentido de aumentar a sua eficácia e de lhe reduzir os custos, e isto sem pôr em risco a qualidade do nível de serviços que presta ao cidadão. Compreende-se que era uma tarefa difícil, que só uma liderança forte e prestigiada poderia encetar, o que não era o caso.
Toda a gente pensava que a crise era passageira. O pensamento dominante, inquinado por preconceitos ideológicos, dizia que a crise era conjuntural, quando já se percebia que ela era estrutural, sistémica, endémica, contagiosa e duradoura. Em 2008 e 2009, ninguém pensou que Portugal iria chegar a 2012 à beira de um precipício colossal. Jean Monnet, um dos fundadores da CEE, disse que as pessoas só compreendem a crise, quando levam com ela na cabeça. E quando se chega a esse ponto, já é tarde demais, digo eu.
O quinto erro, o da assinatura do Memorando da Troika, que a União Europeia insistentemente sugeria (impunha) e a direita indígena desejava, foi uma autêntica tragédia. O acordo foi imposto sem qualquer contraproposta. De joelhos, assumindo o papel de mendigo, quatro figurantes da alta política, com o beneplácito de um quinto figurante, o Presidente da República, assinaram o Tratado da Traição ou o Tratado da Vergonha. Um governo patriótico teria exigido um prazo muito mais alargado para reduzir o défice orçamental, sob a ameaça de que, em alternativa, se declararia o não pagamento da dívida e a saída do euro, ameaça esta que provocaria um ataque de pânico a Angela Merkel, ao ponto de a levar a urinar-se pelas pernas abaixo. Ainda hoje, se Portugal, Espanha, Itália e a Grécia se concertassem neste propósito, a Kaiser, também conhecida pela Hitler de saias, teria uma descomunal diarreia durante mais de um ano. E o motivo não seria para menos. É que a saída destes países da zona euro acarretaria, até 2020, perdas para a economia mundial no valor de 17 biliões de euros. Só a Alemanha, em relação a um colapso da Grécia e de Portugal, perderia, durante aquele mesmo período, 225 mil milhões de euros. E é esta fragilidade dos países credores, que deve ser explorada com inteligência e sentido de oportunidade pelos países do sul da Europa, o que exigiria governos patrióticos, não submetidos aos interesses do capitalismo financeiro.
Totalmente de acordo com esta lúcida análise, que nada tem de ideológica, pois assenta em pressupostos da realidade objetiva.
ResponderEliminarEntre outros, O FMI é um instrumento tenebroso do capitalismo financeiro internacional, que procura, de forma progressiva, assegurar o seu domínio, fomentando políticas agressivas, que promovam a transferência da riqueza dos países pobres e menos ricos, para os países mais ricos, e que, dentro de cada país, operem a transferência dos rendimentos do trabalho para os rendimentos do capital. E este mesmo postulado está a ser aplicado, de forma drástica, pelos países ricos da UE, liderados pela toda a poderosa Alemanha, agora a recuperar, do seu velho baú, os tiques imperiais.
Portugal cometeu cinco grandes erros estratégicos, que agora está a pagar caro. O primeiro foi a precipitada negociação da adesão à então CEE, muito marcada, para consumo interno, por motivações políticas, o que levou a ignorar os aspetos económicos do desenvolvimento sustentado. Na altura, as pessoas interrogavam-se, com um certo alarme, como era possível receber-se compensações financeiras para abater barcos de pesca e arrancar videiras e oliveiras. Ao aceitar-se a exclusão de Portugal da PAC (Política Agrícola Comum) estava a condenar-se à morte o setor primário da economia portuguesa, avançando o falacioso argumento que era mais rentável importar alimentos. De uma penada, a Espanha, a França e a Itália, os países europeus com maiores potencialidades agrícolas no espaço europeu, conquistaram dez milhões de consumidores.
O segundo erro, que remonta à era cavaquista, assenta primordialmente na ausência de um Plano Geral de Desenvolvimento Estratégico, que privilegiasse o crescimento na base do aumento da produtividade (a taxa de produtividade cresceu, mas não acompanhou o ritmo de crescimento da dos principais parceiros comerciais) e que se centrasse, de uma forma planeada e rigorosamente controlada na aplicação dos Fundos Europeus. Foi uma década de regabofe e de desperdício. A economia cresceu, mas foi, essencialmente à custa de fatores exógenos.
O terceiro erro, que remonta à era guterrista, diz respeito à entrada do euro. No dia em que a nova moeda começou a circular, o setor exportador da economia portuguesa, de repente, perdeu em competitividade um valor percentual idêntico ao valor percentual acrescentado à nova moeda adotada. Portugal fez a figura daquela criança que veste o casaco do pai. O euro era uma moeda demasiado grande, em valor, em relação ao nível da produtividade da sua economia. Também aquele slogan, a querer sobrevalorizar as vantagens de pertencer ao “pelotão da frente”, veio a revelar-se falacioso e enganador, pois todos os indicadores macro económicos começaram a degradar-se, após a adesão à moeda única. Portugal pensou como aquele ciclista, que, não tendo treinado regular e eficientemente, inicia a corrida da etapa, colando-se ao pelotão da frente, julgando assim, ingenuamente, que esse pelotão, através de um efeito sinérgico, vai puxar por ele. É claro, que acaba por descolar, porque as pernas não aguentam. E Portugal não aguentou a pedalada da moeda única, como agora amargamente está a ser demonstrado.
(continua no próximo comentário)