João Cardoso Rosas contraria com sensatez a ideia, que corre em certos círculos da direita mais intransigente, de que este governo não é neoliberal, revelando a aposta de sempre nestes círculos em apagar as marcas ideológicas da governação, em transferir responsabilidades. João Duque chegou mesmo a dizer que este governo estaria à esquerda da esquerda. Vale tudo e ainda não vimos tudo. Este governo está comprometido com a austeridade imposta externamente, o melhor seguro de vida do programa de transformação neoliberal nesta fase, revelando aliás a natureza ideológica da integração europeia pelo menos desde Maastricht. O enquadramento monetário e financeiro nunca é neutro e com estas regras os efeitos só podem ser neoliberais. Não há alternativas nesta estrutura. Os aumentos de impostos em si pouco ou nada dizem, sobretudo quando os seus efeitos podem ser regressivos para amplos sectores, já que se diminui o número de escalões, e quando podem facilitar um aumento ainda maior da pressão para a compressão da despesa, sobretudo com salários, prestações sociais e investimento público, uma fragilização recessiva e regressiva sem paralelo em curso nos últimos anos, um aumento do desemprego sem paralelo, uma pressão sobre o mundo do trabalho organizado sem paralelo, um processo de neoliberalização sem paralelo. Por isso, é preciso conhecer o neoliberalismo enquanto feixe de ideias, enquanto pacote político-ideológico, para usar a expressão de Cardoso Rosas, nas suas várias versões, teoricamente mais puras e politicamente mais impuras, existindo já uma ampla literatura crítica nos campos da economia e filosofia políticas sobre estas matérias, aqui resumida em dois mil caracteres. Digo impuras porque as ideologias dominantes também têm de integrar valores e práticas que por vezes não ligam bem com aspectos centrais do seu projecto, têm de aceitar recuos tácticos para poder avançar com a força de um núcleo de convicções que nunca se abandona, com a força das estruturas legadas por vitórias anteriores, com a pressão externa que é a força de um bloco social interno cuja desagregação vai sendo adiada.
sexta-feira, 12 de outubro de 2012
Da prática neoliberal
[Q]uando se diz que este Governo não pode ser neoliberal porque fez um "enorme aumento de impostos" esquece-se que ele o fez a contragosto - ou melhor, por incompetência, inabilidade, volubilidade - e que, além do mais, esse é apenas um dos elementos do neoliberalismo. Todos os outros aspectos acima referidos estão presentes na agenda do Governo: a subalternização da democracia, a ideia de que nunca há alternativa, a precarização dos vínculos laborais, a redução dos apoios sociais e da sua universalidade, os cortes cegos na despesa, as privatizações a todo o custo, a ausência de política económica, etc. Foi precisamente por ter, à partida, um projecto neoliberal que este Governo pôde dizer que o programa da ‘troika', que tem também esse pendor, era "o seu programa", não apenas uma necessidade contingente, e que quereria, como tem feito, ir para além dele. Alguns dirão: "pois é, mas, na nossa situação, não temos alternativa". Isso significa que estão a pensar dentro do mesmo paradigma neoliberal.
João Cardoso Rosas contraria com sensatez a ideia, que corre em certos círculos da direita mais intransigente, de que este governo não é neoliberal, revelando a aposta de sempre nestes círculos em apagar as marcas ideológicas da governação, em transferir responsabilidades. João Duque chegou mesmo a dizer que este governo estaria à esquerda da esquerda. Vale tudo e ainda não vimos tudo. Este governo está comprometido com a austeridade imposta externamente, o melhor seguro de vida do programa de transformação neoliberal nesta fase, revelando aliás a natureza ideológica da integração europeia pelo menos desde Maastricht. O enquadramento monetário e financeiro nunca é neutro e com estas regras os efeitos só podem ser neoliberais. Não há alternativas nesta estrutura. Os aumentos de impostos em si pouco ou nada dizem, sobretudo quando os seus efeitos podem ser regressivos para amplos sectores, já que se diminui o número de escalões, e quando podem facilitar um aumento ainda maior da pressão para a compressão da despesa, sobretudo com salários, prestações sociais e investimento público, uma fragilização recessiva e regressiva sem paralelo em curso nos últimos anos, um aumento do desemprego sem paralelo, uma pressão sobre o mundo do trabalho organizado sem paralelo, um processo de neoliberalização sem paralelo. Por isso, é preciso conhecer o neoliberalismo enquanto feixe de ideias, enquanto pacote político-ideológico, para usar a expressão de Cardoso Rosas, nas suas várias versões, teoricamente mais puras e politicamente mais impuras, existindo já uma ampla literatura crítica nos campos da economia e filosofia políticas sobre estas matérias, aqui resumida em dois mil caracteres. Digo impuras porque as ideologias dominantes também têm de integrar valores e práticas que por vezes não ligam bem com aspectos centrais do seu projecto, têm de aceitar recuos tácticos para poder avançar com a força de um núcleo de convicções que nunca se abandona, com a força das estruturas legadas por vitórias anteriores, com a pressão externa que é a força de um bloco social interno cuja desagregação vai sendo adiada.
João Cardoso Rosas contraria com sensatez a ideia, que corre em certos círculos da direita mais intransigente, de que este governo não é neoliberal, revelando a aposta de sempre nestes círculos em apagar as marcas ideológicas da governação, em transferir responsabilidades. João Duque chegou mesmo a dizer que este governo estaria à esquerda da esquerda. Vale tudo e ainda não vimos tudo. Este governo está comprometido com a austeridade imposta externamente, o melhor seguro de vida do programa de transformação neoliberal nesta fase, revelando aliás a natureza ideológica da integração europeia pelo menos desde Maastricht. O enquadramento monetário e financeiro nunca é neutro e com estas regras os efeitos só podem ser neoliberais. Não há alternativas nesta estrutura. Os aumentos de impostos em si pouco ou nada dizem, sobretudo quando os seus efeitos podem ser regressivos para amplos sectores, já que se diminui o número de escalões, e quando podem facilitar um aumento ainda maior da pressão para a compressão da despesa, sobretudo com salários, prestações sociais e investimento público, uma fragilização recessiva e regressiva sem paralelo em curso nos últimos anos, um aumento do desemprego sem paralelo, uma pressão sobre o mundo do trabalho organizado sem paralelo, um processo de neoliberalização sem paralelo. Por isso, é preciso conhecer o neoliberalismo enquanto feixe de ideias, enquanto pacote político-ideológico, para usar a expressão de Cardoso Rosas, nas suas várias versões, teoricamente mais puras e politicamente mais impuras, existindo já uma ampla literatura crítica nos campos da economia e filosofia políticas sobre estas matérias, aqui resumida em dois mil caracteres. Digo impuras porque as ideologias dominantes também têm de integrar valores e práticas que por vezes não ligam bem com aspectos centrais do seu projecto, têm de aceitar recuos tácticos para poder avançar com a força de um núcleo de convicções que nunca se abandona, com a força das estruturas legadas por vitórias anteriores, com a pressão externa que é a força de um bloco social interno cuja desagregação vai sendo adiada.
Caracterizar o neoliberalismo através de chavões usados pelos seus opositores é intelectualmente desonesto. É como dizer que o socialismo dizendo que corresponde à "igual distribuição de misérias", como disse Winston Churchill. Ainda por cima ninguém pode negar que foi isto que aconteceu na União Soviética e que acontece hoje em Cuba e na Coreia do Norte. Claro que os socialistas dirão que não é esse o objetivo (declarado) do socialismo, mas também os neoliberais dirão não serem a "subalternozação da democracia, os cortes cegos na despesa, as privatizações a todo o custo, a ausência de política económica, etc" os objetivos (declarados) da ideologia neoliberal.
ResponderEliminarSe os críticos estão legitimados em apelidar as políticas do Governo de políticas de direita devido às privatizações, à fragilização dos vínculos laborais e aos cortes nos apoios sociais (medidas geralmente associadas ao neoliberalismo), então João Duque também estará legitimado em dizer que o Governo se pôs à esquerda da esquerda ao aplicar um enorme aumento de impostos (medida feralmente associada ao socialismo).
Mais, é perfeitamente defensável a tese de que este governo não está a ser totalmente fiel à ideologia neoliberal: nos EUA, que também enfrentam uma dívida pública de mais de 100% do PIB e um défice estimado de 7% do PIB em 2012, no entanto, o candidato do Partido Republicano defende uma redução dos impostos sobre o rendimento (incluindo para as classes altas), supostamente para promover a criação de emprego e o crescimento económico. Os efeitos são discutíveis, mas as mdedidas propostas mostram claramente que a ideologia neoliberal não advoga aumentos de impostos, mesmo em tempos de crise. Para os neoliberais, a redução do défice deve fazer-se quase exclusivamente à custa da redução da despesa, na linha da diminuição do papel do Estado em todos os setores.
Tenho um pedido de esclarecimento ao Ricardo Reis: considera o aparato intelectual neoliberal uma construção enquadrável no espectro direita-esquerda?
ResponderEliminarQuanto ao resto, "totalmente fiel" caberá em reflexões pósteras e enfeitiçadas pela correspondência perfeita entre modelos e realidades. Nenhum governo é "totalmente fiel" a um programa de base ideológica. O seu texto deixa implícita a ideia de que, por não ser "totalmente fiel" à ideologia neoliberal, o governo não pode ser classificado de neoliberal. Os governos da Dinamarca e da Noruega têm uma suposta matriz social-democrata, e também não têm sido "totalmente fiéis". Mas a matriz tem influência na produção de políticas públicas.
Por fim, não é verdade que "a linha da diminuição do papel do Estado em todos os sectores" seja neoliberal. As práticas e discursos neoliberais dominantes procuram uma conversão do papel do Estado enquanto disciplinador e não necessariamente uma redução líquida da sua pegada financeira. Pelo contrário: na verdade, o Estado regulador ou vígia, parafraseando Nozick, não está menos presente e não se ausenta da coacção. É simplesmente mais selectivo nos alvos dessa coacção e usa mecanismos mais sofisticados.
Não concordo com tudo o que é dito pelo João Rodrigues, mas o seu texto também indica desonestidade intelectual ao associar Cuba à Coreia do Norte. "Ninguém" pode negar que a "igual distribuição de misérias" é aquilo que ocorre em Cuba e ocorreu na União Soviética sem qualificadores temporais? Portanto, eu posso afirmar que alguém usa de desonestidade intelectual e, logo a seguir, dou um exemplo de desonestidade intelectual (é aquilo que se infere da sua referência a Churchill, não conhecido exactamente pelo seu rigor analítico) e limito os termos do debate dizendo que "ninguém pode negar" aquilo que eu afirmo, mas eu posso negar aquilo que é afirmado? Isso sim, é desonestidade e arrogância intelectual.
Caro Luís Bernardo,
ResponderEliminarApesar de eu preferir definir a orientação política ao longo de pelo menos dois eixos, social e económico, variando de totalmente livre a totalmente controlado pelo Estado, a ausência de correntes libertárias em Portugal torna possível o enquadramento das ideologias económicas dos vários partidos no espectro direita-esquerda. Por isso mesmo, tal como eu fiz, vemos os sindicatos e os partidos de esquerda a apelar ao fim da austeridade e das políticas de direita.
Se lhe faz confusão, pode ignorar o "totalmente" do meu último parágrafo. Fica só "fiel". A validade dos meus argumentos mantém-se e deixa de haver lugar à sua crítica. O que eu quis dizer é que o neoliberalismo não advoga a subida de impostos, mesmo num contexto de défice orçamental e dívida pública elevados. De qualquer forma, claro que concordo que este governo tem uma matriz neoliberal.
Quanto ao seu 3º parágrafo, a verdade é que o termo "neoliberal", quando usado pela esquerda, pode designar uma variedade tão grande de ideias que o neoliberalismo pode, aparentemente, defender uma coisa e o seu oposto. Fala em "práticas e discursos neoliberais dominantes". Dominantes onde? É que os discursos que eu vejo só não advogam uma redução do papel do Estado na defesa. E advogam sempre uma redução líquida da sua pegada financeira, especialmente quando há défice orçamental. Como certamente compreenderá, parafrasear um filósofo político que teve o seu expoente nos anos 70 e 80 dificilmente constitui prova suficiente do que são "as práticas e discursos neoliberais dominantes".
Quanto ao último parágrafo, não vejo onde está a minha desonestidade intelectual ao associar Cuba à Coreia do Norte. Cuba é um país oficialmente comunista, governado pelo Partido Comunista de Cuba. Apesar de a Coreia do Norte ter removido todas as referências ao comunismo da sua constituição, a ideologia Juche foi fortemente influenciada pelo Marxismo-Leninismo. Mas se preferir posso substituir a Coreia do Norte pelo Laos. E vamos lá ver uma coisa: eu não disse que os efeitos práticos do neoliberalismo não eram os que o João Rodrigues referiu. O que eu disse é que não devemos caracterizar uma ideologia pelos chavões tipicamente usados pelos seus críticos, correspondam eles ao que se observa na prática ou não. Ao citar Churchill não estava a fazer uma caracterização do socialismo; estava a dar um exemplo do que não se deve fazer. Mas isto não significa que as críticas não sejam certeiras. Muitas das críticas apontadas pelo João Rodrigues ao neoliberalismo são, na minha opinião, corretas. O mesmo se passa com a crítica de Churchill ao socialismo, novamente na minha opinião.
Quanto aos qualificadores temporais: Cuba é um mau país para se viver nos dias de hoje, tal como a União Soviética era um mau país para se viver no seu tempo. E tanto nos dias de hoje como no tempo da URSS, há países não-comunistas onde se vive muito melhor do que em Cuba. Aqui tem os seus "qualificadores temporais".