Vale a pena recuar até 2007 para perceber, com maior clareza, o quadro moral das motivações que levam o governo a obrigar os beneficiários de RSI a efectuar trabalho voluntário não remunerado, a favor da «comunidade». Decorria nesse ano a campanha do referendo pela despenalização da IVG. Propondo manter o aborto como crime, Bagão Félix defendia que apenas fosse alterada a moldura penal então vigente: em vez do encarceramento, as mulheres deveriam ser condenadas a efectuar trabalho comunitário, de modo a poderem «expiar [sim, leram bem: expiar] a sua própria dificuldade moral perante a situação».
O simples facto de o «trabalho comunitário» constar do Código Penal, figurando entre as possíveis medidas de condenação que o mesmo prevê, deveria ser suficiente para demover qualquer tentativa de o transpor para o universo dos direitos e prestações sociais, em que se enquadra o RSI. Por isso, ao proceder a essa transposição, a actual maioria revela uma vez mais a miséria moral em que chafurda: o trabalho «obrigatório voluntário» que estabelece significa, também ele, uma espécie de «expiação da dificuldade moral perante a situação», de pobreza e desemprego, em que os beneficiários do Rendimento Social de Inserção se encontram. Isto, claro está, para além do argumento da «compensação à comunidade», através de trabalho não remunerado, pelas míseras esmolas que a prestação representa.
Mas a miséria moral da coligação PSD/PP e de certos sectores sociais que a apoiam não fica por aqui. Ela revela-se igualmente no oportunismo sórdido que esta decisão encerra, ao permitir que as IPSS beneficiem, sem quaisquer encargos, de mão-de-obra gratuita e forçadamente submissa, que com muita facilidade se converterá, na prática, em «pau para toda a colher». No fundo, é o Estado, ou seja, os contribuintes, que passam a subsidiar graciosamente estas instituições, através do trabalho «voluntário obrigatório» a que passam a ficam compelidos os pobres e desempregados.
O ministro Pedro Mota Soares lembra constantemente que o contrato de inserção estabelece um quadro de direitos, mas também de deveres, para os beneficiários. Mas esquece-se, contudo, de referir que esse contrato também estabelece um quadro de deveres para o Estado: entre eles, o de encontrar soluções credíveis, dignas e substantivas de inserção. Porque o RSI constitui um instrumento e não a «medida transitória de esmolagem», paga com suor escravo, em que a actual maioria de direita o pretende converter.
A ideologia que sustenta esta concepção de sociedade é criminosa, as meias palavras continuam a pautar a realidade, e tudo parece uma encenação onde cada um tem o seu lugar e o seu papel. A aceitação do absurdo torna-nos incapazes, limita a capacidade de sentir, reduz-nos.
ResponderEliminarCaro Nuno Serra:
ResponderEliminar«permitir que IPSS's beneficiem»
IPSS é um acrónimo, pelo que não pluraliza com um s como os substantivos, muito menos numa forma gramatical anglo-saxónica com sentido de posse (ex. The man´s dog».
Pluraliza naturalmente lendo-se ora no singular ora no plural, conforme for a frase:
Instituição Pública de Solidariedade Social
ou
Instituições Públicas de Solidariedade Social
Portanto, sempre e só IPSS
O facto de tanta gente sofisticada intelectual e academicamente persistir neste erro é para mim um verdadeiro mistério.
Desculpe esta minha inconveniência, mas não resisti
Caro António Pedro Pereira,
ResponderEliminarNão é nenhuma inconveniência. Só tenho a agradecer-lhe a chamada de atenção. Acabei de rectificar.
Obrigado.
Dizia o Raul Solnado, na "História da Minha Vida": "O meu pai obrigou-me a ir para os bombeiros voluntários". Agora a realidade ultrapassa a ficção.
ResponderEliminarExcelente texto!
ResponderEliminarÉ difícil acrescentar algo a este excelente texto. Mas falta na análise um dado/facto importante sobre o qual devemos reflectir: este é o primeiro governo fascista do pós 25 de Abril e as suas medidas são orientadas já não como liberais mas sim como fazendo parte integrante de um projecto que desconhecemos e que só nos vai sendo revelado aos poucos.
ResponderEliminarUma claríssima onda de "eugenia" sobressai em várias medidas deste malfadado governo.
A crítica de hoje é fruto de mais uma medida de eugenia.
... o governo sabe que está a matar gente, embora diga o contrário. Os nazis também o fizeram.
A última vez na Europa deve ter sido em 1935-45, na Alemanha; e é realmente uma forma de seleccionar/eliminar pessoas; e de ladrões e incompetentes escravizarem e roubarem a parte mais fraca da população, fazendo-os sentir culpados/agradecidos... Depois, pode ter acontecido pontualmente e em menor escala em vários países. Talvez seja mais realista comparar c/ França, Espanha etc actuais. Aqui na Suécia, uma pessoa nessas circunstâncias tem a renda e algumas contas (saúde, etc) pagas, e aprox 400 euros; tem obrig de procurar trab, mas ñ pode ser colocada sem ordenado (mín ca 1250 euros depois de todos desc/impostos). Essa medida vai aumentar o desemprego, não vai criar nada na economia, cria é uma geração de escravos e meio-analfabetos tristes, etc.
ResponderEliminarÉ mto importante lutar, manter sempre a exigência de integração como cidadão de pleno direito na sociedade, nos termos da Constituição.
Caro António Pedro Pereira
ResponderEliminarNão são Instituições Públicas ... são Particulares !! ... I. Particular de Solidariedade Social.
OK?
http://ruadopatrocinio.wordpress.com/2012/08/30/a-esquerda-entre-sisifo-e-d-quixote/
ResponderEliminarCaro Nonsense:
ResponderEliminarCertamente, foi um lapso da minha parte.
Peço desculpa.
E eu a chamar a atenção do Nuno Serra e a cometer um erro, mas são de natureza diferente.
O do 's é hoje uma praga sem sentido.
O meu um erro simplesmente, como cometemos tantos.