O socialismo é, essencialmente, a tendência imanente a uma civilização industrial no sentido de superar o mercado autorregulado, subordinando-o conscientemente a uma sociedade democrática. É a solução natural aos olhos dos operários industriais, que não encontram qualquer razão para que a produção não seja directamente regulada em termos políticos ou para que os mercados sejam mais do que um elemento útil, mas subordinado numa sociedade livre. Do ponto de vista da comunidade no seu conjunto, o socialismo é simplesmente a continuação desse esforço para tornar a sociedade um conjunto de relações propriamente humanas entre pessoas, que, na Europa, sempre esteve associado às tradições cristãs. Do ponto de vista do sistema económico, corresponde, pelo contrário, a uma rutura imediata com o passado imediato, na medida em que recusa a tentativa de tornar os ganhos monetários privados o incentivo geral das actividades produtivas, e na medida em que não reconhece o direito dos indivíduos a disporem a título privado dos principais instrumentos de produção (…) [O] sistema de mercado deixará de ser autorregulado, até mesmo no plano dos princípios, pois deixará de incluir a força de trabalho, a terra e a moeda [mercadorias fictícias] (…) o fim da sociedade de mercado de modo nenhum significa a ausência de mercados (…) [estes] continuarão a assegurar a liberdade do consumidor, a indicar as modificações da procura, a exercer a sua influência sobre os rendimentos do produtor e a servir de instrumentos de contabilidade, embora deixando por inteiro de ser órgãos de uma autorregulação da economia (…) a regulação expande e ao mesmo tempo restringe a liberdade (…) tudo o que importa aqui é a comparação entre as liberdades perdidas e conquistadas (…) a sociedade industrial poderá permitir-se ser, ao mesmo tempo, justa e livre.
Excertos de capítulos finais de A Grande Transformação (1944), de Karl Polanyi, editada entre nós pelas Edições 70 (na excelente colecção História e Sociedade), em Julho de 2012, com segura tradução de Miguel Serras Pereira. Um acontecimento cultural tão importante quanto tardio. Para além das duas introduções que constam da edição norte-americana consolidada, de 2001, o leitor da edição portuguesa é brindado com mais duas. A primeira, da autoria de Diogo Ramado Curto, Nuno Domingos e Miguel Jerónimo, contém várias ideias com as quais pretendo entabular um diálogo crítico. Destaco duas, em particular: não “é simples (…) encontrar um projecto social e político definido em A Grande Transformação”, já que “a luta de Polanyi contra uma economia desincrustada da sociedade não assume uma forma visível”, e a “crítica de Polanyi à economia de mercado revelava um desejo de regresso a uma comunidade idealizada, que a industrialização teria destruído. Este anseio assinalava a uma nostalgia por um certo espaço autárquico, autossufuciente, assente no trabalho comunitário e na família, que em grande medida configurava uma espécie de conservadorismo social, que apenas na superfície se constitui como crítica radical.”
Os excertos de Polanyi que seleccionei são o meu ponto de partida para questionar estas interpretações na apresentação que farei amanhã no socialismo 2012 sobre o projecto socialista de Karl Polanyi, da sua participação no debate sobre o cálculo económico em socialismo, iniciado na Viena dos anos vinte, à sua visão madura em A Grande Transformação, escrita já nos EUA. Ideais centrais: Polanyi é um pensador socialista original, não-marxista (entre outros elementos, a teoria do valor-trabalho é por si rejeitada desde cedo), sem ser anti-marxista (não é por acaso que são tantas as afinidades com um certo marxismo humanista ou que até é hoje considerado um autor charneira do chamado marxismo sociológico); os conceitos de realismo e de utopia são por si mobilizados para defender que o socialismo, um certo socialismo, com lugar circunscrito, mas real, para os mercados e focado na expansão das liberdades, é uma hipótese realista na época da grande empresa e de todas as interdependências socioeconómicas; pelo contrário, o liberalismo de Mises e Hayek, entre outros, seria “intrinsecamente utópico”, seria totalmente incompatível com o que se julga saber sobre as naturezas humana e das relações sociais.
De resto, a ligação entre Polanyi e Keynes, aludida pelos autores na introdução, é potencialmente interessante, desde que estejamos a falar de um Keynes e de uma tradição que não encaixa na ideia do Estado reduzido a um “instrumento técnico” e muito menos em qualquer hipótese do homo economicus, supostamente na base da teoria económica. Keynes é um economista político e moral, cujas intuições, por exemplo, sobre o comportamento humano em contexto de incerteza radical, têm sido usadas pela economia comportamental ou por alguma sociologia económica dos mercados financeiros, e quem aprofundou muitas das suas ideias coloca a política no centro, o que não quer dizer que não existam questões técnicas ou que tudo seja redutível a uma qualquer vontade indómita, claro. Tanto Polanyi como Keynes, apesar das diferenças ideológicas, estavam apostados em compatibilizar uma ideia de soberania democrática de base nacional, o que exigia superar o sistema cambial rigido, a circulação irrestrita de capitais e a ideologia do comércio dito livre, com arranjos internacionais que fomentassem a cooperação entre unidades mais autónomas, mas nunca autárcicas. Esse projecto assumidamente ético-político-económico (sem separações artificiais), leia-se este artigo de Keynes e compare-se com Polanyi, parece-me tão necessário hoje como na altura.
Bom, a minha sugestão, para quem não leu o livro, é que comece por Polanyi propriamente dito, lá para a página 100 da edição portuguesa, deixando as estimulantes introduções e os debates sem fim para o fim. Esqueça também este poste, portanto. Boa leitura.
Estamos longe do verdadeiro socialismo, esse de que fala Polanyi, no qual é o mercado que se subordina à sociedade. Actualmente as sociedades, dominadas pelos teólogos do mercado, encontram-se cada vez mais subordinadas aos mercados. A teologia dos mercados auto-regulados de que fala Polanyi invadiu o mundo (humano e natural) e interfere com o seu livre funcionamento, de tal forma que se a Polanyi fosse dado a ver o que ocorreu desde o momento em que publicou a sua obra (1944), e mais particularmente, após os anos 70 do século XX, ficaria surpreendido. As consequências da conversão em mercadoria de quase tudo, para que tudo possa funcionar de acordo com as regras do mercado auto-regulado, são do mais funesto que há. A Natureza e a Cultura encontram-se actualmente subvertidas por esta ideologia dos mercados auto-regulados. Até os lamentos pela desaparição da alta cultura, de um Vargas Llosa, homem que, como é sabido, está longe de ser um esquerdista, vão invariavelmente dar ao mercado e à mercantilização da cultura. O que será mais preciso para que os fundamentalistas de mercado acordem e percebam o erro em que estão a incorrer ao julgarem que o mercado auto-regulado é a coisa mais natural do mundo e que esteve sempre na essência da Natureza?
ResponderEliminarsei lá , agora , descendo à terra e ao prático anti ideológico : todas as empresas big ,as chamadas corporações pelos bifes , hão-de estar com tremores pelos joelhos , dependem do consumo de massas.não sei , mas tempos curiosos estes , em que vão ser pobres aqueles que se julgavam ricos. todas as empresas viradas para o consumo de massas e que, gananciosas, se deslocalizaram vão falir , já perceberam isto? bem podem a danone e a loreal clamar para que os tributem mais.. eu não já não compro nem comprarei nada deles. é a vida. pqp!
ResponderEliminarJoão,
ResponderEliminarnão conhecia a obra "Grandes Transformações" assisti a sua apresentação com atenção porque não consigo raciocinar nos termos da Mariana.
Alguns conceitos dos amaldiçoados" Mises e Hayek podem em módulo ser úteis para racionar em termos de moeda única.
Vou tentar encontrar e ler Polanyi para ver até onde atinge meu "logos" e guardo o seu questionamento em ficheiro para orientar a leitura.
Se não for para chatear, volto mais vezes.