A orquestra que decide continuar a tocar enquanto o transatlântico se afunda constitui uma das imagens mais inquietantes, pelo seu significado, da tragédia do Titanic. A notável obra de engenharia, admirada por uns pela proeza técnica a que dava corpo e censurada por outros pela opulência e magalomania que exibia, mergulhava nas águas geladas do Atlântico na noite de 14 de Abril de 1912, depois de embater naquele que passaria a ser o mais famoso iceberg da história marítima.
Um século mais tarde, não é difícil ver na Europa a repetição sinistra e metafórica de um Titanic que se afunda. Após décadas em que se deram passos condignos com os ideais que o inspiraram (paz, prosperidade e solidariedade entre os povos), o projecto europeu tranformar-se-ia (sobretudo a partir de Maastricht e com a criação da Zona Euro), numa ardilosa obra da engenharia neoliberal, que rompe com a visão de futuro que Monnet e Schumman projectaram, no pós-guerra, para o velho continente.
Uma arquitectura institucional assimétrica e um modelo de governação económica europeia disfuncional (que tratou, por exemplo, de esboroar eficazmente os mecanismos de controlo público dos sistemas bancário e financeiro e de amputar o BCE das competências inerentes a um verdadeiro banco central), a par de uma moeda que se revelaria implacável para com as economias do Sul, fariam com que a Europa estremecesse, logo ao primeiro embate, com a crise financeira de 2007, iniciada nos Estados Unidos com o colapso do subprime.
Tal como no Titanic, em que muitos dos viajantes de primeira classe davam como certo conseguir escapar ao naufrágio – reservando assim o infortúnio aos passageiros dos andares inferiores – também nos dias que correm os líderes dos países do centro europeu parecem supor que, enquanto o barco se afunda, apenas as periferias ficarão eventualmente para trás.
Talvez também por isso, mas sobretudo pela crença fanática nos sortilégios salvíficos da austeridade, os actuais líderes europeus se assemelhem a uma perigosa orquestra, medíocre e obstinada, que insiste em tocar (ou simplesmente deixar que continue a ser tocada) a melodia responsável pelo afundamento do navio. Por mais que se somem os sinais e as evidências do suicídio que resulta das suas opções e da recusa em não fazer o que há muito deveria estar a ser feito. Longe, muito longe, da sobriedade digna e corajosa dos membros da orquestra do Titanic.
Excelente analogia!
ResponderEliminarO paralelo está muito bem conseguido, mas os senhores que comandam a orquestra estão surdos cegos e coxos.
ResponderEliminarSimplesmente não acreditam na realidade que vivemos nem querem inverter as manobras que cada dia mais afundam este país.
a linha Maginot é outra analogia.
ResponderEliminarVejam esta peça de propaganda do BCE
Perfeito...
ResponderEliminarLevo pra FB.
Obg
Caro Nuno
ResponderEliminarDuvido muito sinceramente que Monnet e Schumman sejam merecedores desse retrato hagiográfico (humanitários, pacifistas, filantrópicos e coisa e tal) que o Nuno ainda segue.
Isso talvez nem fosse importante, e portanto isto agora seria só tendência minha para a quezília e a picuinhice... mas o problema é que não é. O erro da "formatação" prévia produz inevitavelmente erro de diagnóstico, e erro sério.
O que está a acontecer não é mau... ou melhor, talvez o seja para o "europeísmo utópico" duma certa esquerda, hmmm... "opiácea", digamos assim.
Do ponto de vista do "europeísmo real", porém, porreiro pá.
Aparelhos de estado depauperados e com partes "nobres" convenientemente desnatadas, "estados sociais" reduzidos, pessoal a bater a bolinha baixo que o-respeitinho-é-coisa-muito-bonita-e-se-não-estás-interessado-há-mais-quem-queira-compreendeste-ou-queres-que-te-explique?, desigualdades rampantes, parte do trabalho no rendimento total a encolher...
Sim, há uma coisa muito boa na sua metáfora, Nuno. A orquestra não esteve apenas olimpicamente (ou criminosamente) indiferente ao descalabro real.
Foi pior do que isso. Foi precisamente por causa da melodia da orquestra (cavalo de Tróia das célebres sereias, ou isto tudo serão metáforas a mais?) que o navio bateu.
Mas daí, por outro lado... "that's the spirit"? (Ou será que me engano, que os factos estão incorrectos e o quadro mental "opiáceo" é que continua a fornecer a leitura válida?)
Caro João Carlos Graça,
ResponderEliminarConcedo na bonomia porventura excessiva (e sobretudo simplista) com que é aqui referida a visão europeia de Monnet e Schumman. Admito até que é legítimo suspeitar se, na prática, a construção europeia – na sua fase mais promissora – esteve assim tão empenhada em dar materialidade às concepções mais solidárias e humanistas.
Essas dúvidas (e a sua pertinência) são legítimas (sobretudo hoje). Mas mesmo assumindo o cenário menos “opiáceo”, mais céptico, prefiro encarar a Europa como um ideal possível. Tão possível, afinal, como tudo o resto… Como um Estado que se encarrega de zelas pelos seus interesses (em nome do interesse comum). Como a ideia de uma sociedade que exige decência, justiça e solidariedade, recusando empenhadamente que tudo se submeta às garras do mercado. É pedir muito? É sonhar demasiado? Se o for, sê-lo-á tanto se tivermos um país ou um agregado de países em mente.
Um abraço,
Nuno
Parabéns pela abordagem do tema, que muito me comove, pois também eu vivi a dolorosa experiência de náufrago, ao longo de 38 dias, a bordo de uma frágil piroga - Curiosamente, numa dessas minhas viagens (pois foram três) numa noite eu adormeci e voltei-me com a canoa. Quando já estava exausto, sentei-me (escarranchei-me) no costado da piroga e cantei Cremos em Vós ó Deus! -"Nearer My God to Thee" - Depois de recuperar as forças voltei de novo à luta, até que consegui finalmente que a canoa flutuasse, sem que as vagas a inundassem - Foram momentos de grande aflição, que eu recordo no meu site http://www.odisseiasnosmares.com/2012/04/naufragos-do-titanic-in-memory-of.html
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