O ruído que a comunicação social produz todos os dias com a crise da zona euro, e os seus aspectos particulares em Portugal, centra-se no défice orçamental e na dívida pública. Ao fazê-lo oculta o problema de fundo, a dívida privada externa. Todos sabemos que a integração da economia portuguesa no euro produziu um crescimento medíocre que está associado a défices sistemáticos no comércio com os restantes países da zona. Antes do euro, o país desvalorizava o escudo para encarecer as importações e aumentar a margem de lucro dos exportadores, desse modo reequilibrando a balança comercial e recuperando as reservas de divisas. Como membro da zona euro, perdeu esse instrumento de regulação. Os bancos dos países excedentários foram financiando os nossos défices e criou-se a ilusão de que as desvalorizações pertenciam ao passado. Até que a grande recessão atingiu a Europa.
A crise do euro, em Portugal e no resto da periferia, é a da impossibilidade de o país manter indefinidamente o seu desequilíbrio externo, a impossibilidade de acumular dívida privada sem limite. Com a progressiva recusa de financiamento por parte dos bancos estrangeiros, o país acabou por perceber que afinal o défice externo permanece como problema central da economia. Como era de esperar, o financiamento da troika foi obtido sob condição de uma desvalorização, agora interna. Trata-se de produzir uma forte recessão na economia, de tal forma que, ao reduzir-se o consumo e o investimento, também se reduzam substancialmente as importações. A recessão, produzindo elevado desemprego, também cria uma forte pressão para a descida dos salários com vista ao estímulo das exportações. As reduções de salários na administração pública também transmitem ao sector privado o sentido global da política económica.
Como está à vista de todos, a via da desvalorização interna é de uma crueldade atroz. Os custos humanos do desemprego numa escala inimaginável e em condições de apoio reduzidas, a humilhação, a conflitualidade e até a desagregação sofrida pelas famílias falidas sujeitas a pedir apoio dos familiares mais idosos, a perda definitiva do potencial de produção das empresas encerradas, tudo isto constitui o preço a pagar para obter a redução das importações. Entretanto, a redução salarial dos que ainda têm emprego dificilmente alcançará a escala dos 20%-30% que alguns preconizam, até porque a Alemanha não abandonará a compressão salarial que sustenta o seu modelo mercantilista. Em qualquer sociedade a resistência à baixa dos salários nominais é grande, por maioria de razão em Portugal, onde os salários pagos pelas indústrias exportadoras são baixíssimos, frequentemente apenas o salário mínimo. Na Grécia, após anos de recessão e uma taxa de desemprego de 20%, o indicador dos “custos de trabalho por unidade produzida” ainda permanece acima do seu valor em 2006(1). Acresce que uma política económica pró-cíclica agrava o peso da dívida pública e torna ainda mais difícil o desendividamento do sector privado. Numa palavra, a desvalorização interna aprofunda a crise financeira.
Estes são os custos da transformação de Portugal numa região empobrecida, estância de lazer de uma UE germanizada. Será mesmo este o futuro que queremos para o nosso país? Não seria preferível recuperar as vantagens da soberania monetária?
(1) M. Weisbrot e J. A. Montecino (2012), More Pain, no Gain for Greece: Is the Euro Worth the Costs of Pro-Cyclical Fiscal Policy and Internal Devaluation?
Publicado ontem no jornal i.
Concordo plenamente.
ResponderEliminarA insistência do governo grego em manter o país no euro está-se a tornar ridícula.
Sim, Jorge, claro que era "preferível recuperar as vantagens da soberania monetária"!
ResponderEliminarMas vivemos decididamente, nessa matéria, num barranco de cegos... Ficámos dependentes, deixámos de apreciar a nossa liberdade política, agora levamos porrada a valer, mas continuamos com medo de recuperar a "liberdade positiva" (ler auto-determinação colectiva, nacional), e cada vez com mais medo.
Quanto mais "ela" nos bate, mais gostamos "dela", da "Europa", mais esperamos "dela", mais receamos sequer considerar a eventualidade da nossa "vida sem ela" ou "depois dela".
Isto ainda vai acabar, sim. Mas mesmo muito mal para nós.
E a esquerda "pró-europeísta" tem já - e vai ter mais - uma responsabilidade tremenda nesse desastre colectivo...
Caro Jorge, primeiro que tudo tenho de referir que o gráfico apresentado é falacioso, pois parece que os salários em 2000 estavam ao mesmo nível em termos absolutos, e como tal, a "culpa" da falta de competitividade foi apenas nos "gananciosos trabalhadores".
ResponderEliminarPois é, os salário portugueses cresceram 20% mais que os alemäes (que practicamente se mantiveram nesse períodos), mas continuam a ser, em média, apenas 50% dos alemäes em valores absolutos.
Antes, desvalorizava-se a moeda... mas que benefícios trouxe a desvalorizaçäo de 1979, de 1982, ... quando ela näo foi usada para modernizar o tecido produtivo? Pois... NADA! Compare-se com a desvalorizaçäo da markka finlandesa de 1982. A questäo de fundo, lá está, é que na Finländia se investiu na qualidade e desenvolvimento de tecnologia *local*, em Portugal näo se tocou no paradigma de produzir a baixíssimo custo (a mais frágil das vantagens competitivas).
Sabes, tal como eu, que neste momento a "soberania monetária" näo iria ter outras consequências que aquelas da "desvalorizaçäo interna", e o drama é esse.
JCG, a responsabilidade tremenda de certa esquerda "pró-europeísta" no desastre colectivo é, "apenas", ter alinhado no neoliberalismo. Deslumbradas como o "Fim da História", guinaram ao neoliberalismo,e agora tentam desesperadamente sair do päntano. Tarde piaste, o keynesianismo foi, com a sua ajuda, ilegalizado na UE.
Mas deixem lá. Na semana passada houve greves na Alemanha, convenientemente esquecidas pelos merdia portugueses, em que reclamam aumentos de até 6%. A Merkelinha que se cuide.