terça-feira, 20 de março de 2012

Conhecer a crise? (I)

Pela mão de António Barreto, a Fundação Francisco Manuel dos Santos decidiu criar um novo portal, que pretende «perceber melhor os verdadeiros efeitos da crise» a partir da compilação de um conjunto de indicadores. Chama-se «Conhecer a crise» e alimenta-se em larga medida da base de dados «Pordata», que por sua vez nasce de um projecto desenvolvido pelo sociólogo no final dos anos noventa («A situação social em Portugal)». O Instituto Nacional de Estatística (INE) é o fornecedor principal de informação desta cadeia alimentar, que se assemelha assim a uma espécie de venda a retalho de dados estatísticos produzidos por outros. Como numa mercearia, de tempos a tempos a montra é arejada e arranjada, mudando os produtos expostos ou arrumando-os de forma diferente.

Claro que a António Barreto deve reconhecer-se o mérito de deitar mãos a um trabalho que o INE há muito podia e devia ter iniciado: a constituição e publicação sistemática de séries longas de dados nos mais variados domínios. É basicamente isso que as mercearias de informação estatística Pingo Doce fazem com a «Pordata», na sequência do trabalho da «Situação social em Portugal». Porém - com maior ou menor subtileza, com maior ou menor intenção - estas bases de dados perpassam a ideia de se estar perante o verdadeiro sistema estatístico português. O que não é obviamente correcto, nem consistente (falta por exemplo, em toda a linha, informação desagregada a escalas sub-nacionais), nem sequer justo para com o seu fornecedor principal, o INE. De facto, o Instituto Nacional de Estatística tem um excelente portal, que apenas é obscurecido pelo empenho com que as mercearias estatísticas da Jerónimo Martins se colocam no espaço mediático.(*)

Poderá dizer-se que António Barreto acrescenta, nestes projectos, análise sociológica à simplicidade dos números. Contudo, nesse âmbito, os resultados são muito dispares e duvidosos. Se é verdade que, a partir das suas colecções de dados, Barreto já fez bons trabalhos (como a série para televisão «Portugal, um Retrato Social»), não é menos verdade que também já abençoou produtos deploráveis, como a recente série «Nós, os portugueses» (também para televisão), que ofereceu ao grande público, em horário nobre, peças jornalísticas carregadas de demagogia, populismo e desinformação (como esta, a que já nos referimos neste blogue).

Vindo de um sociólogo que tem alinhado na causa austeritária, e que verte um ódio de estimação à coisa pública e adere com frequência às teses fraudulentas do «Estado gordo» e das «políticas sociais em excesso», o portal «Conhecer a Crise» dá sinais de poder vir a representar pouco mais do que um prato requentado de dados disponíveis e uma preocupante legitimação do situacionismo vigente. Mas a isso iremos num próximo poste.

(*) Só assim consigo explicar, devo dizer, que tenha sido o portal da Pordata (e não o do INE) a ser distinguido com o prémio internacional da World Summit Awards, em 2011.

9 comentários:

  1. Desculpe mas acho que está a desvalorizar um trabalho meritório por preconceito ideológico.

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  2. Não é possível fazer uma análise dos pontos positivos e negativos do Pordata e do INE sem entrar num tipo de linguagem que não diz nada e sugere sempre que tudo o que tem a ver com a Jerónimo Martins e Álvaro Barreto é mau?

    "espécie de venda a retalho de dados estatísticos produzidos por outros"

    A divulgação científica também deve ser considerada venda a retalho das ideias produzidas por outros?

    "Como numa mercearia, de tempos a tempos a montra é arejada e arranjada, mudando os produtos expostos ou arrumando-os de forma diferente."

    Isto pode dizer-se de qualquer site na net. Para quer serve, neste post?

    "Instituto Nacional de Estatística tem um excelente portal, que apenas é obscurecido pelo empenho com que as mercearias estatísticas da Jerónimo Martins se colocam no espaço mediático."

    Que o INE tenha um excelente portal é uma opinião de que discordo. Muitas vezes tentei obter por lá alguma informação e em geral acho difícil distinguir o mais importante ou o que procuro de tudo o resto. Agora partir de uma opinião para achar que o Pordata "obscurece" o site do INE parece-me desligado da realidade.

    Finalmente acho preocupante o princípio de desvalorizar imediatamente o trabalho de alguém apenas porque tem defendido posições de que discordamos.

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  3. Caro Carlos Albuquerque,

    Se reler o post constarará que é reconhecido a António Barreto o mérito de ter iniciado a sistematização e divulgação de informação estatística (na maior parte dos casos proveniente do INE).

    O que pergunto é pelo valor acrescentado além desse mérito. Sim, em alguns casos existe (dei um exemplo) e noutros é não só ausente como ideologicamente enviesado e desonesto (dei um exemplo também, de pura «desdivulgação» e desinformação científica). E, sobretudo, desproporcionado face à projecção mediática que o projecto tem. A culpa, poderá dizer, é do próprio INE. De acordo, mas isso não confere à Pordata o fulgor que se lhe pretende atribuir.

    A questão, meu caro, pode até colocar-se noutros termos: o «negócio» (contrato, acordo) que António Barreto fez e continua a fazer com o INE corresponde muito bem (não por culpa do sociólogo, obviamente) a um exemplo do que o Estado não deve na minha opinião fazer (e que Barreto tantas vezes critica): deixar por mãos alheias a colheita preguiçosa do trabalho de qualidade que desenvolve.

    Quanto ao «Conhecer a Crise», lá irei, como prometido.

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  4. Caro Nuno Serra,

    O INE tem como objectivo principal a recolha e tratamento de dados estatísticos. É natural que tenha o exclusivo dessa actividade pelo facto de muitos desses dados serem eles próprios recolhidos por outras instituições estatais. Esse mérito (será efectivamente um mérito?) é do INE. Agora não percebo porque é que o INE não há-de disponibilizar em bruto os dados que recolhe e organiza de forma a que qualquer outra instituição (universidades, NGOs, ...) crie valor a partir dos dados recolhidos, proporcionando visões e análises diferentes sobre os dados.

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  5. Estamos inteiramente de acordo, caro Anónimo. Também acho que o INE deve disponibilizar, publicamente, os dados de que dispõe (mais ainda do que tem feito, sensivelmente de há uma meia dúzia de anos a esta parte). Lembro aliás que ali algures no fim do cavaquismo prevalecia a tese de que a informação (às vezes ridícula) deveria ser paga (e bem paga) pelos utilizadores. Felizmente acabou por se recuar nessa lógica empresarial.

    O meu ponto é outro. O projecto originário de António Barreto (Situação Social em Portugal) foi pago com fundos públicos. Para quê? Para sistematizar em séries longas de que o Estado dispunha (no INE). Ou seja, o Estado pagou para que fosse feito um trabalho que o próprio Estado poderia muito facilmente fazer. Uma espécie de outsourcing absurdo, na linha aliás de muitas práticas pouco interessantes de gestão da coisa pública que o próprio António Barreto (e bem) muitas vezes critica.

    O outro ponto é o aquilatarmos do verdadeiro valor acrescentado que o Pordata representa em relação ao INE. Mas a isso já me referi anteriormente.

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  6. Contrariamente ao que muita gente pensa, António Barreto não é um sociólogo mas um contabilista social.
    Pode alguém indicar-me um livro, um artigo, uma "ideia" deste autor que tenha a ver com sociologia?

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  7. " em horário nobre, peças jornalísticas carregadas de demagogia, populismo e desinformação (como esta, "...
    Não colocou o link correcto na palavra "esta", que redirecciona para a pagina inicial do blogger.

    Por favor não publique este comentário.

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  8. Caro cenas underground,
    Peço desculpa por não fazer o que me pediu (não publicar o seu comentário). Mas foi a única forma que encontrei para lhe agradecer o alerta sobre o link incorrecto.
    Obrigado e um abraço

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  9. Gostaria apenas de referir que muitos dos dados (se calhar os mais falados) não são do INE mas sim da Nielsen....

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