quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Portugal não é a Grécia, o Haiti não é aqui

Começa a ler-se a notícia e a primeira reacção, instintiva, é a de querer acreditar que se trata apenas de uma peça jornalística pouco verosímil, empolada ou distorcida, nas fronteiras da propaganda e agitação política. Deseja-se, numa espécie de reacção súbita de auto-defesa, que tudo não seja mais do que uma nota intencionalmente incendiária, vertida por um qualquer movimento menos confiável, que procura estabelecer generalizações a partir de casos muito pontuais ou mal explicados.

A reportagem «Gregos em desespero entregam filhos a instituições» tem contudo a chancela da insuspeita BBC e é assinada pela jornalista Chloe Hadjimatheou, a partir de Atenas. A RTP traduz o texto original na sua página da internet, mas desconheço se o mesmo deu lugar a uma peça noticiosa, num dos telejornais do dia, algures entre os 45 mil euros mensais que Eduardo Catroga vai passar a receber, as declarações alienígenas de Vítor Gaspar no Parlamento ou as conclusões do Boletim de Inverno do Banco de Portugal, que dão conta do agravamento da recessão para 2012, com uma contracção da economia que rondará, afinal, os 3,1% do PIB.

Pouco ou nada há para acrescentar à notícia. Ela é suficientemente clara e sóbria, dispensando o recurso a lamechices, para nos deixar com um nó na garganta. E, bem o sabemos, a Grécia não é o Haiti, por mais perplexos que nos sintamos perante esta sinistra Europa, num impensável início do século XXI. Mas não consigo neste momento deixar de lembrar uns cartazes que vi por diversas vezes em Frankfurt, a apelar à solidariedade dos alemães para com os países do terceiro mundo. Como não posso impedir a memória daquela constatação terrível, de um povo ainda em choque, no desfecho da Segunda Guerra Mundial: «não sabíamos». Ou, ainda, do trecho de uma outra música, igualmente conhecida, que adaptada diria hoje «espero que os alemães também amem as suas crianças».

Uma coisa tornou-se contudo mais clara, mais consciente: na imposição da criminosa receita austeritária à periferia do Sul da Europa, não há memória de um apelo, de uma exigência, de um lamento genuino ou até de medidas concretas - por parte da troika e das suas figuras de proa, de Merkel ou de Sarkosy - capazes de impedir, intransigentemente, que os sacrifícios recaíssem sobre os mais vulneráveis, de modo a tornar impossível que situações limite conhecessem a luz do dia. Apenas uma imensa e indisfarçável frieza. A mesma indisfarçável frieza de Pedro Passos Coelho e da generalidade dos membros do seu governo, em delírio por poderem desbravar os caminhos que vão para «além da troika».

11 comentários:

  1. O termo FRIEZA é mesmo o termo mais adequado ao que se passa nas Políticas seguidas nos Países Europeus Periféricos que estão sob controle da dupla Franco-Germânica, uma Frieza implacável, sem contemplações, uma Frieza feita de números, estatísticas, uma racionalidade realmente Fria, que visa apenas criar as condições mais propícias à exploração acentuada da mão-de-obra disponível...
    -Ouvi hoje -será verdade?- que o projecto Alemão consistiria em propiciar a deslocalização da mão-de-obra mais qualificada da Europa Periférica e Pobre, para os Países mais Ricos e do Norte, onde conseguirão Trabalho por valores superiores aos dos Países de Origem, mas infinitamente mais leves que aqueles pagos aos Residentes.
    Uma Emigração já não oriunda dos Países do Norte de África ou do Leste Europeu, mas de Portugal, da Grécia ou da Espanha...Uma emigração mais segura, estável e qualificada.

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  2. “os pais vêem-se obrigados a deixar os filhos ao cuidado de instituições sociais e religiosas”

    O fado de uns contrasta com a alegria de outros. Todas essas instituições, bancos alimentares e demais tralha caritativa devem sentir-se muito contentes, a transbordar de felicidade.

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  3. quando não puder alimentar a minha filha faço o mesmo: coloco-a numa instituição. e depois vou directamente matar os que me roubaram o pão até que me acabem as forças.

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  4. D.H.

    Parece que a frieza não é apanágio só dos alemães.

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  5. A canção a que julgo que faz referência é do Sting, chama-se Russians e diz a certa altura: "I hope the Russians love their children too". Não se refere, portanto, aos alemães. Claro, pode ser que esteja a pensar noutra canção.
    Tiago Neves

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  6. Caro Tiago,
    A referência à música é essa mesma, mas intencionalmente adaptada - no post - à situação actual.
    Obrigado,
    Nuno

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  7. Os grandes pilares que estiveram na base da construção da Europa nada têm a ver com a aberração da UE!! Perderam-se os valores da solidariedade e da equidade. A ler o discurso de Helmut Schmidt ( que é completamente insusppeito dada a sua condição de membro da nação pivôt da Europa) no congresso do seu partido. Uma Europa que não tenha em linha de conta o indivíduo como medida de toda a sua actuação, jamais será uma união.

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  8. Mesmo sem teorias elaboradas da conspiração, só a partir da observação empírica dos factos, o meirelesportuense não deixa de ser oportuno no seu comentário...
    Partilharei este texto, Nuno Serra, a bem da literacia mediática, do conhecimento em geral e da força da serena (?) revolta dos justos.
    Uma sociedade que não é solidária é uma solidão, como dizia Espinosa.

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  9. Porque não questionam a escravidão que a sociedade de consumo exerce sobre as pessoas? Que tal uma proposta para outro modelo de vida?
    Não há dinheiro porque terá que haver palhaçada? Este bem estar pequeno burguês consumista do Ocidente não foi construído sobre a exploração do 3ºMundo? Não podemos aceitar dividir o dinheiro com os restantes países?, e no minimo, vivermos dentro da nossa capacidade de produção de riqueza, adaptarmo-nos. Ou, talvez seja melhor lutar para que todos os povos do Mundo tenham o tão hipócrita estado social nos moldes que ele se desenvolveu. Porque não lutar pela internacionalização do estado social para todos os povos do Mundo?
    Talvez os chineses paguem ou até mesmo os marcianos.

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  10. Concordo com tudo o que aqui é dito e partilhei nas redes.
    Hei-de cá voltar.

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  11. Frieza, sim, mas não racionalidade. A Não ser que consideremos racionais os sociopatas.

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