segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Não foi o despesismo do Estado que gerou esta crise

Ao contrário da retórica dos economistas que nos endoutrinam depois das 8 da noite, é preciso insistir num ponto essencial: a chamada “crise da dívida soberana” não foi provocada pelo despesismo público. O caso da Grécia é uma excepção que, por si só, não produziria esta crise não fora a existência de uma outra dívida na periferia da UE que esses economistas colocam em segundo plano. De facto, foi a dívida privada que originou esta crise europeia (ver este artigo de Paul De Grauwe), e é a arquitectura institucional da Zona Euro que a agrava.

Claro que os défices públicos também aumentaram na sequência da Grande Recessão, mas esse aumento deveu-se a causas bem conhecidas que não podem ser rotuladas de despesismo: a recessão que fez disparar os estabilizadores automáticos (mais despesa com subsídios sociais e menos receitas fiscais), o gasto público de estímulo à economia nos termos acordados com a Comissão Europeia e (no caso de Portugal, Espanha, e sobretudo Irlanda) o resgate de bancos insolventes. Tivesse havido continuidade na política expansionista iniciada pela UE em 2008 (e, no mínimo, tivesse regulamentado a especulação “a descoberto”), hoje estaria em condições de solucionar os casos da Grécia e da Irlanda com custos sociais suportáveis.

Mas a doutrina monetarista atacou em força em 2009 e levou os decisores políticos, incluindo socialistas e sociais-democratas, a aceitar que com esses défices expansionistas a Europa corria um sério risco de hiperinflação. Com uma capacidade produtiva longe do pleno emprego, o receio era absurdo mas a verdade é que, aos primeiros sinais de retoma do crescimento do PIB, os media deram o palco aos economistas que clamavam pelo fim das medidas de estímulo e pela urgência de medidas de austeridade. Uma doutrina com pressupostos errados (agentes económicos dotados de informação perfeita e racionalidade calculatória infalível, capaz de antecipar e neutralizar os efeitos das políticas económicas num horizonte de muitos anos) só podia levar a decisões erradas. A recessão não só nunca terminou (para mim, os milhões de cidadãos entretanto lançados no desemprego contam para a definição de recessão) como está a agravar-se com a generalização da austeridade. Discretamente, o FMI já o assume (ver aqui, antepenúltimo parágrafo).

A dívida privada que causou esta crise é a consequência da grande disparidade de nível de desenvolvimento que existe entre o centro da UE (liderado pela Alemanha) e a sua periferia (Grécia, Portugal, Espanha, Irlanda, Países Bálticos e Hungria). Com taxas de juro baixas, e com toda a força permitida ao marketing bancário, foi fácil aplicar os excedentes financeiros do “centro” em endividamento do sector privado na “periferia”. A incapacidade para competir num mercado aberto com as importações dos países com salários de subsistência afectou profundamente a indústria da “periferia” e encaminhou os empresários mais ricos para os lucrativos negócios abrigados dessa concorrência (actividade financeira, telecomunicações, grande distribuição, centros comerciais, imobiliário, energia, etc.).

Assim, o endividamento da classe média da “periferia” não foi mais do que uma ilusão de melhoria do nível de vida que foi vendida pela finança europeia com a cumplicidade dos seus governos, do Banco Central Europeu e das suas antenas nacionais. Estas autoridades dispunham de meios para travar este processo, mas não quiseram prejudicar o negócio dos seus amigos da finança. Apesar dos enormes lucros que esta distribuiu aos accionistas, e dos escandalosos bónus que pagou a administradores e directores, os governos, a Comissão Europeia e o BCE continuam a adiar a inevitável reestruturação das dívidas (privadas e públicas) da Grécia e da Irlanda com penalização dos credores. Como também adiam uma inevitável escolha política: (1) avançar para uma governação federal do euro, o que obrigaria a construir uma federação política (“não há impostos sem eleições”) ou … (2) reconfigurar a Zona Euro tornando-a mais reduzida.

Indiferentes à retórica de negação dos dirigentes políticos, os especuladores acabarão por provocar uma qualquer decisão, não necessariamente a melhor como se imagina. O que é imoral é que as classes mais desfavorecidas, e alguns segmentos da classe média, estão a pagar por uma crise que não produziram, nem sequer como titulares de dívidas.

14 comentários:

  1. "é preciso insistir num ponto essencial: a chamada “crise da dívida soberana” não foi provocada pelo despesismo público"

    Esta insistência é simplesmente espantosa!

    Como é possível afirmar isto e ignorar todos os compromissos desorçamentados que têm sido e continuam a ser assumidos pelos sucessivos governos?

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  2. Dentro das minhas limitações de economia e ainda mais do "economês", não posso estar mais de acordo com a análise, feita por quem julgo saber do "negócio" e por estar de acordo, vou fazer link para o meu blogue, onde digo muitas vezes isto, "à minha moda".

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  3. Desculpam-me a publicidade? Quem ler isto talvez também me queira ler No Moleskine.

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  4. "Esta insistência é simplesmente espantosa!"


    É religiosa.

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  5. Carlos Albuquerque
    e Rui Fonseca

    Se acham que o artigo de Paul De Grauwe é religioso ... só posso ajudar-vos com mais do mesmo. Leiam este (segunda linha, p. 30):
    http://www.ofce.sciences-po.fr/pdf/dtravail/WP2010-11.pdf

    Boa leitura

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  6. Caro Jorge

    "even if public debt rises were a consequence and not a cause of the financial crisis."

    No contexto isto refere-se à situação global e não à situação específica de Portugal.

    O que está em causa é saber se Portugal tem sido bem governado no que à despesa diz respeito.

    Já reparou no que o Tribunal de Contas tem escrito sobre as PPPs e sobre muitos dos projectos públicos em Portugal?

    Será que há uma certa esquerda que quer a todo o custo fechar os olhos à governação de José Sócrates e atirar as culpas todas para o exterior?

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  7. Caro JVC

    Li o seu texto de 7/12 no Moleskine.

    Não tenho uma visão moralista da economia ao nível global mas penso que devemos separar os planos.

    A nível internacional devemos usar todas as estratégias razoáveis ao nosso alcance para sairmos da situação em estamos. O que devemos é fazer uma análise de custo/benefício de cada estratégia.

    Por outro lado devemos fazer uma análise interna sobre a actuação dos nossos governos. Era possível termos evitado esta situação que agora tem custos tão elevados? Estou convencido de que sim.

    Estou convencido que tem havido um despesismo absurdo, com uma grande parte de dinheiro gasto em projectos mal pensados e mal negociados, em que os privados têm rentabilidades chorudas e em que o estado acaba sempre a pagar mais e mais.

    Fazer uma análise à governação do país parece-me imprescindível e isso não pode ser substituído por uma linha vaga num relatório que nem sequer se estava a referir especificamente a Portugal.

    O que mais me choca neste momento em quase toda a esquerda é esta incapacidade de estranhar que as suas posições na Assembleia da República estejam tão bem alinhadas com as dos grandes bancos e construtoras.

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  8. Carlos Albuquerque, está a cair no erro constante de pensar que o PS é de esquerda.

    O PS como um todo deixou de ser de esquerda, se näo antes, em 1982. Häo alguns esquerdistas lá dentro, mas säo segregados. É um facto. O seu último líder realmente de esquerda foi Jorge Sampaio, tanto que durou pouco, tendo sido remetido à Cämara de Lisboa, onde o seu programa de esquerda (que inclui näo ter pejo em coligar-se a PCP e PSR) vingou. E a esquerda votou nele para Presidente. Esse votos, juntos com os do PS, deram-lhe a vitória.

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  9. Caro Maquiavel

    Quem tem protegido as grandes e inúteis obras no Parlamento são partidos que eu imaginava de esquerda, como o BE e o PCP. Mas posso estar enganado, claro.

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  10. Desculpem lá, mas, com tanta malfeitoria que o PS tem feito desde....olhem desde que me lembro,alguém pode ter dúvidas que o PS há muiiiiiiitoo deixou de ser de esquerda.!!!!!!!!!

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  11. Teoria, muita teoria, não digo que à teoria não caiba um importante papel, mas parece-me que se os seus autores pretendem chegar ao "homem comum" tem que falar em coisas que ele (eu) entenda: Seria melhor não ter entrado na CEE? Porquê? Como estaríamos hoje? (uma coisa digo já eu: não teríamos tantas secções nos supermercados, auto-estrados, dirão mas quem ganhou foi a gente da Merkel que as encheu de Audis Mercedes etc.)
    E agora: Sai-se do Euro? Alguém sabe a dimensão e natureza das consequências? Sabem? É que eu já ouvi cenários muito díspares. A desvalorização que se lhe seguiria resolveria o essencial? Eu Também acho que não, por uma razão simples: o nosso problema seria o problema de séculos; falta de recursos, naturais e não só; falta de empreendedorismo, falta de organização, falta de saber fazer. E depois, era possível estabelecer uma autarcia económica o que pressupunha a saída da UE? Voltar a comer a fruta da avózinha etc . Os mais velhos lembram-se de que nos idos anos 70 até as modestas batatas eram objecto de açambarcamento!!! É essa a alternativa?

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  12. Carlos, "as grandes e inúteis obras no Parlamento" a que se refere säo o TGV e o novo aeroporto?

    Ou a proibiçäo de distribuiçäo antecipada de dividendos para fugir aos impostos?

    Ou a "liberalizaçäo" do mercado de trabalho?

    Ou o fim dos "off-shores"?

    Ser de esquerda näo se resume a uma obra. E quando a apoiam, näo é para benefício dos "amigos" das construtoras, é por princípio.

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  13. Caro Maquiavel

    Quando me refiro às obras refiro-me em primeiro lugar ao TGV mas também a quase todas as PPPs, com destaque para auto-estradas inúteis.

    Ser de esquerda não pode significar pensar que os recursos são ilimitados nem pode significar inconsciência perante as consequências das decisões tomadas.

    Se o PCP ou o BE não mediram os efeitos do apoio às grandes obras, os bancos e as construtoras de certeza que os mediram muitíssimo bem.

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  14. Caro Carlos, compreendi-te, e dou-te razäo. Portugal é o país das 3 ou 4 autoestradas-paralelas, e nem uma linha de comboio (essa de houver tira-se, toda a gente TEM de ter carro!).
    Já nem me lembrava das PPP, ou melhor, PPA (parceiras para amigos), pagas pelos contribuintes, e as reformas milionárias dos quadros superiores da FP (näo os dos funcionários "normais") que dariam para pagar 2 ou mais linhas de TGV de Caminha a VR St António ...

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