«Insultar os mercados prejudica a economia nacional», insistiu uma vez mais Cavaco Silva, o candidato incapaz de tecer qualquer crítica à responsabilidade que o modelo de governação económica europeia, (nomeadamente no que concerne à actuação do BCE), tem na agonia em que se arrasta a crise.
A aceitação subserviente da subjugação da política à (ir)racionalidade dos mercados financeiros não é, pois, assunto que inquiete o político Cavaco Silva. Tal como na resposta que consta da ficha que preencheu para a PIDE (na qual Aníbal se considera «integrado no actual regime político»), poderá dizer-se que o agora candidato à presidência se considera perfeitamente “integrado no actual regime económico”. O que é preciso é "fazer o trabalho de casa" (não importam as condições decisivas de enquadramento para tal se faça). O que é preciso é tratar da vidinha.
Esta deferência para com os mercados financeiros e para com as instituições europeias encontra-se contudo em plena coerência com o modelo económico que Cavaco Silva, o "bom aluno", aceitou e preconizou para Portugal. Um modelo que assenta numa economia do endividamento, o paradigma constituído no seu consulado e que se aprofundou, há que o dizer, nas governações seguintes.
A política de habitação seguida nos governos de Cavaco Silva é, a este respeito, um exemplo lapidar. Foi de facto nos seus mandatos que se configuraram os pilares da "revolução da casa própria", um dos fenómenos mais marcantes da sociedade e da economia portuguesa nas últimas duas décadas. Isto é, a resolução da questão da habitação através dos mecanismos do mercado, através da massificação do crédito à aquisição de casa própria.
A supressão da fixação administrativa das taxas de juro em 1989, a liberalização do crédito à habitação em 1991 e a descida progressiva dos juros estabeleceram as "condições macroeconómicas" para o impulso da habitação própria, que passa a representar 76% do parque habitacional em 2001, depois de significar 66% em 1991 e apenas cerca de 47% em 1970.
Dados recentes mostram que o peso do crédito à habitação no endividamento total das famílias aumentou cerca de dez pontos percentuais nos últimos 15 anos, atingindo em 2009 quase 80% do volume global de empréstimos contraídos por particulares. A relevância destes números fica amplamente reforçada pelo facto de o endividamento ter aumentado ao longo da última década (de 54% do PIB em 1999 para 97% em 2009, conforme indicam os Relatórios de Estabilidade Financeira do Banco de Portugal). Em percentagem do PIB, o endividamento das famílias com a aquisição de casa própria passa de cerca de 40% para 77% no mesmo período.
Poderá argumentar-se que assim se resolveu a questão habitacional no nosso país. Mas imediatamente verificamos que "a questão habitacional" que se resolveu foi apenas a da aquisição de casa própria pela classe média, o que não é propriamente uma verdadeira "questão habitacional". No consulado de Cavaco, os mais carenciados, as populações residentes em barracas na Área Metropolitana de Lisboa, apenas veriam atendidas as suas necessidades na sequência de uma Presidência Aberta de Mário Soares, violentíssima para com a indiferença do governo, e que obrigaria Cavaco Silva a lançar o Programa Especial de Realojamento (PER), em 1993. O Aníbal social é o da caridade, não o da política social pública.
Mas quem ganhou verdadeiramente com este modelo de política habitacional, assente no endividamento das famílias, uma vez que a democratização do acesso à habitação não resultou da diminuição do preço dos fogos (que não cessou aliás de subir entre 1995 e 2006)? Ganhou obviamente o rentismo associado aos mercados fundiário e imobiliário, que resistiram incólumes à "democratização" da casa própria. A factura, está bem de ver, foi sendo paga pelo Estado (através das bonificações e isenções fiscais à aquisição) e pelas famílias (através do endividamento junto das instituições bancárias). Num processo de alimentação da especulação imobiliária com recursos públicos, que contribuiu acrescidamente para uma absurda overdose da construção, que o rácio de quase um alojamento e meio por família, em 2001, claramente reflecte.
Excelente reflexão.
ResponderEliminarQuem ganhou com a política de habitação de Cavaco Silva?
No meu ponto de vista, são 4 o conjunto dos vencedores "directos": os construtores civis, as câmaras municipais, os bancos e, finalmente, muito finalmente,as
famílias.
Creio que não é necessária muita argumentação para explicar por que razão os construtores civis lucraram com a política de habitação referida.
As câmaras municipais são vencedoras pelas receitas vindas directamente do licenciamento e por via do IMI, para além dos "benefícios da economia paralela" associados de atribuição de apartamentos e outras "facilidades habitacionais" aos responsáveis camarários.
(Há que recordar neste particular as denúncias de Saldanha Sanches e que apesar do alarido imediato não conduziram a processos e a condenações judiciais. Lembre-se a triste e vergonhosa decisão da justiça portuguesa de absolvição de Domingos Nóvoa...).
Também não creio ser necessário gastar muito latim para referir os lucros dos bancos que irresponsavelmente concederam crédito para habitação até aos 80 anos dos mutuários, por prazos até 40 anos e até 100% do valor das habitações (já de si inflaccionado)...
As famílias, enquanto puderem pagar e enquanto não forem desalojadas pelas decisões judiciais nos processos por execução da dívida habitacional não cumprida, passaram a ter tecto na cidade...assim se explicando o fenómeno de atracção da cidade pelo campo.
Importa ainda falar dos vencedores "indirectos": os partidos políticos e os governos.
Os partidos políticos têm tido nos construtores civis uma fonte inesgotável de financiamento. Basta consultar as contas dos partidos e das campanhas eleitorais no Tribunal Constitucional...por aquela pequena amostra legal se poderá calcular a parte relativa à "economia paralela".
Os governos têm tido nos construtores margem de manobra para as políticas desastrosas de vias de comunicação e obras públicas. Os bancos lá estão também para financiar a operação e emprestar um ar de legalidade à "coisa".
Acresce a criação de algum emprego (desqualificado e transitório), mas ainda assim com alguma expressão nacional neste sector e que os governos vão aproveitando para referir objectivos de criação de postos de trabalho e de divulgação da política de imigração.
Isto está tudo ligado.
Pretender que Cavaco Silva nada tem que ver com este cenário e pode agora ascender a "salvador da pátria", é demagogia que não colhe, apesar das "sondagens" que nos garantem a inevitabilidade da sua reeleição à 1.ª volta.
A ideia de responsabilização jurídica que Passos Coelho "inventou" para a classe política governativa tolhe-se, desde logo, pela "passagem" de Cavaco Silva pelo governo de ortugal em mais de uma década. Não admira que, na hora da verdade, não chegue a servir para mais do que soundbyte...
Maria da Paz
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ResponderEliminarCaro Nuno Serra,
ResponderEliminarPor qualquer razão que não consigo explicar, o meu comentário aparece em triplicado.
Peço-lhe o favor de o "reduzir" à unidade.
Muito grata,
Maria da Paz
Excelente post.
ResponderEliminarGostaria de lançar para o debate da politica habitacional a ocasião perdida pela ciência e tecnologia do boom habitacional.
O boom no mercado imobiliário não foi infelizmente acompanhado por uma evolução do conhecimento e no desenvolvimento de novos materiais e novas ténicas capaz de criar valor acresentado, e motor duma industria de ponta capaz de exportar.
Infelizmente temos casas novas mas sem niveis de qualidade acustica e energética que nos posicione no pelotão da frente. Raros casos de condominios vendidos a preços exorbitantes que poderiam ser reproduzidos no mercado habitacional da classe média.
Ana,
ResponderEliminarOs "senhores" construtores civis não lucrariam tanto caso os novos materiais e as novas técnicas tivessem sido implementados.
Sei até que houve/há projectos para aquecimento de todas as águas da habitação através da enregia solar e por aproveitamento das águas pluviais, mas exactamente porque a canalização teria de ser diferente da actualmente existente e mais cara, não é usada na construção nacional.
Óptimo Post. Acrescento apenas, concordando com o escrito, que não é só para Cavaco que social é caridade e esmola. Parece-me um fenómeno em voga e que alastra. Preocupa-me o tom de algumas noticias televisivas que fazem recordar outros tempos em que a caridade era tb assim noticiada. (não vivi esses tempos mas existe arquivo e as semelhanças são assustadoras.)
ResponderEliminarHomo Integradus
ResponderEliminarHá muitas e boas razões para criticar Cavaco Silva e a sua actuação política enquanto primeiro-ministro e agora como Presidente. Atacá-lo como responsável pela política de habitação seguida no período democrático como aqui se faz é apenas demagógico e pouco rigoroso.
ResponderEliminarA política de habitação liberal seguida em Portugal – um dos países mais liberais no contexto europeu – releva de uma opção política que tem sido seguida por todas as forças políticas que governaram o país, por todos os primeiro-ministros e pelos grupos parlamentares que os apoiaram. E começou antes de Cavaco.
Colocar o esforço feito pelo Estado – através do “esforço” feito no plano das isenções fiscais - no mesmo plano do feito pelas famílias é um disparate. Faz lembrar a lengalenga do dr. Vital Moreira quando queria caucionar a proposta do Governo de reduzir as deduções ficais com a compra de casa. O Estado português é um dos dois ou três que menos gasta – incluindo o esforço fiscal – com a política de habitação. É mesmo um dos mais liberais no contexto da União Europeia, que como se sabe não tem uma política europeia de habitação mas onde existem bons exemplos que infelizmente os diferentes governos se recusaram sempre a seguir.
Entre a esquerda e a direita que nos têm governado do ponto de vista da política pública de habitação o que nota é a mesma omissão com o benefício do sistema financeiro – o grande beneficiário, o resto são tretas.