terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Alarmismo não é informação


No passado domingo, o Público ofereceu aos leitores um dossiê sobre “os custos da saída do euro”. Na segunda página apresenta uma súmula de declarações dos economistas José Silva Lopes e João Ferreira do Amaral. O essencial das suas opiniões resume-se assim: “Cenários bons para Portugal, não há neste momento. Há cenários maus e menos maus.”

A importância do tema requeria um tratamento isento e especializado, o que não foi o caso. O título da primeira página sugere desde logo ao leitor que uma saída do euro é garantidamente um caos. Nem sequer uma forte possibilidade, uma certeza. Contudo, o fundamento que é dado ao leitor para essa certeza é apenas a opinião desses dois economistas e o exemplo da Argentina.

Por muito respeitável que seja a opinião de Silva Lopes, a verdade é que as poucas linhas publicadas em discurso directo não nos mostram os pressupostos em que se baseou para dizer que “a curto prazo seria o caos completo”. Uma decisão dessa natureza teria de ser convenientemente preparada, mantida em sigilo, e executada com rapidez e determinação, por forma a impedir a fuga de capitais e a corrida aos bancos. Isso implicaria o seu controle público durante algum tempo. Aliás, com a experiência adquirida na introdução da moeda única, deve ser possível uma passagem rápida e organizada para o escudo. É certo que, mesmo com um controle administrativo dos preços bem apertado, a inflação seria inicialmente elevada. Mas a breve trecho tenderia a ficar controlada como ilustra a recente experiência da Islândia. O grande problema seria sem dúvida o congelamento do financiamento externo. Estariam a China, o Brasil, e alguns fundos soberanos disponíveis para ajudar durante algum tempo?

O caso Argentino é mal invocado neste dossiê. O caos que este país viveu foi sobretudo causado pela aplicação, durante anos, das políticas de austeridade preconizadas pelo FMI para defender a paridade com o dólar. Um erro que foi prolongado ao pretender manter-se a mesma política cambial já depois da renúncia ao pagamento da dívida externa. A decisão de reestruturar a dívida, negociando o seu valor e reescalonando os pagamentos, teria de ser acompanhada de uma desvalorização que estimule fortemente a reorientação da produção nacional para os bens transaccionáveis. Só assim haveria crescimento gerador de receita fiscal para começar a amortizar a dívida. Pena é que o Público não tenha sabido questionar Silva Lopes sobre o fundamento das suas dúvidas relativamente à eficácia deste mecanismo.

Finalmente, o dossiê não aborda duas questões centrais: 1) Que produtos e mercados podem sustentar um crescimento do PIB rebocado pelas exportações após a recessão em que o País vai cair em 2011? 2) Como é que se consegue amortizar dívida pública em recessão ou, na melhor da hipóteses, com um crescimento anémico por vários anos? Ficaremos ligados à ajuda da UE/FMI por uma década?

Os economistas entrevistados ignoraram estas questões (não colocadas) o que é bem revelador da ambiguidade das suas opiniões. É que Espanha, França e Alemanha representam mais de metade das nossas exportações e, como se sabe, um empresário não muda de mercados como quem muda de camisa. E, por outro lado, para manter o nível da dívida e pagar apenas os juros a uma taxa de 5% (inferior à da ajuda da UE/FMI) Portugal teria de apresentar um excedente orçamental primário já em 2012 da ordem dos 5% (ver aqui, uma estimativa por alto). Como é isto possível num contexto de câmbios fixos como é o euro na prática?

Como se vê, mesmo a nossa melhor imprensa ainda tem muito que caminhar para fazer jornalismo sério. Algo que é incompatível com afirmações do tipo “Qualquer regresso [ao escudo] seria algo muito próximo da tragédia.” (Editorial do Público)

6 comentários:

  1. Fiquei com uma dúvida: o serviço de divida não está incluido no OE ?!

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  2. Manuel Rocha

    Obrigado por colocar a dúvida. Faltava a palavra 'primário' (excedente primário) que entretanto já inseri.

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  3. "Uma decisão dessa natureza teria de ser convenientemente preparada, mantida em sigilo,..."

    Em ditadura, se bem percebo.

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  4. Interessante.

    Quando era Medina Carreira que fazia as contas ao peso dos juros na economia e à insustentável espiral de endividamento, chamavam-se nomes a MC e aprovavam-se alegremente mais despesas e "investimentos".

    Agora os argumentos catastrofistas já são bons para uma decisão "preparada, mantida em sigilo, e executada com rapidez e determinação", para "controles administrativos" e para provocar uma desvalorização imediata nas poupanças dos portugueses em 30% ou 40%.

    A saída do euro pode não ser o caos total mas não tenho dúvidas de que seria uma tragédia. Creio que teria que ser uma última solução, a usar apenas depois de se terem tentado muitas outras, e não para recuperar uma taxa de crescimento de um PIB que, em valores reais, partiria de um ponto muito mais baixo do que o actual.

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  5. Neste Blog tem-se defendido a inevitabilidade de abandonar o Euro, ainda agora aqui neste post o repetem pela impossibilidade em garantir o serviço da dívida. Além disso, consideram, logicamente para a hecatombe não ser bíblica, que tudo teria que ser feito em absoluto sigilo. Então a conclusão é óbvia: quem tenha dois tostões, agora cêntimos, já sabe, do v/ponto de vista, o que tem a fazer: arranjar um abrigo quanto antes,não se sabe se o processo, apesar das profissões de fé em contrário, não está já em marcha...

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  6. Em ditadura, se bem percebo.

    e porque não? com guilhotina electrónica.

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