sábado, 16 de outubro de 2010

Quatro ideias sobre o OE 2011

1. As opções de fundo do OE 2011 são economicamente erradas e socialmente desastrosas. Proceder a um esforço de consolidação orçamental num momento em que a economia está a sofrer os efeitos da crise financeira internacional vai contra os princípios básicos da macroeconomia e é uma receita certa para a crise social. Face às crescentes dificuldades de financiamento internacional e face inacção da UE, o governo português não tinha grande opção senão enveredar por esse caminho. A UE tem instrumentos para evitar esta chantagem e não o faz por uma opção política daqueles que a dirigem. Estes estão a aproveitar o clima de medo e de incerteza para impôr uma austeridade que vai conduzir à perda de salários e de direitos, e à aceleração da destruição do Estado Social em toda a Europa. Quanto a isto, só ao nível da UE é possível resistir a esta trajectória, que se vai traduzir em maior desemprego, pobreza, desigualdade e desperdício de recursos.

2. Face às pressões externas e à opção da UE pela inacção, o espaço que resta aos governos das economia mais frágeis é exíguo. Recusar as regras do jogo que são impostas a partir de fora, neste momento, traria ainda mais custos económicos e sociais. Jogar segundo essas regras implica proceder a um esforço de consolidação orçamental brutal, procurando maximizar as receitas e minimizar as despesas num curso espaço de tempo. Dicilmente isto poderia ser feito sem cometer injustiças gritantes, por uma razão: a pressão orçamental tem sido uma constante em Portugal na última década e não foi feito um esforço significativo para diversificar as fontes de receita e as formas de poupança de despesa. Logo, se é preciso reduzir fortemente o défice num curto espaço de tempo, as soluções só podem ser ir poupar onde é mais fácil poupar (i.e., reduzir salários e diminuir direitos sociais) e aumentar receitas nas fontes que estão mais à mão (IVA e IRS). Ou seja, essencialmente, vão pagar os do costume.

3. Não obstante os constrangimentos externos, o governo português poderia aproveitar o momento para contribuir para uma redução da iniquidade do sistema fiscal em Portugal – e não o fez. Portugal é um dos países mais desiguais do mundo desenvolvido e um dos motivos para tal é a reduzida tributação dos rendimentos elevados e da riqueza. A tributação do património imobiliária é escassa, boa parte dos rendimentos individuais não é tributada, não existem impostos sobre as grandes fortunas e o imposto sucessório foi abolido – pelo que sabemos, a proposta de OE para 2011 pouco ou nada faz nestes domínios. É verdade que o governo propõe cortes substanciais nas deduções em sede de IRS e limites estritos aos benefícios fiscais (PPRs, seguros de saúde, etc.) – fontes de perda de receita que tendem a beneficiar quem tem maiores rendimentos. Mas a solução conseguida não vai muito longe: na verdade, de acordo com a simulações publicadas na imprensa, a quebra do rendimento depois de imposto é, em termos percentuais, frequentemente superior para os escalões de rendimento mais baixos. Nem aqui a injustiça está a ser corrigida.

4. Pelo que se sabe, o OE 2011 introduz algumas medidas que atenuam a evasão fiscal das empresas – estes avanços têm de ser consolidados e reforçados. Há muito que se sabe que a generalidade das empresas paga muito menos impostos do que deveria, ou não paga de todo. A proposta de OE 2011 parece conter alguns avanços a este nível, por exemplo: limitação do uso dos benefícios fiscais para as empresas; o fim da isenção total dos lucros das SGPS (as 'cabeças' dos grupos económicos); a maior tributação das mais-valias associadas a vendas de participações sociais; um maior controlo da declaração de prejuízos fiscais (os quais permitem às empresas que declaram prejuízos num ano diminuir os impostos que têm de pagar caso obtenham lucros nos anos seguintes); ou o fim do sigilo bancário a quem tem dívidas ao fisco ou à Segurança Social. Mas fica ainda muito por fazer a este nível, por exemplo: os limites ao benefícios fiscais não se aplicam a alguns dos benefícios mais relevantes em termos de receita (e.g., benefícios ao investimento de natureza contratual) e o Tribunal de Contas tem apontado a falta de critérios claros de aferição das vantagens associadas a esta perda de receitas (foram cerca de 600 milhões de euros de benefícios concedidos entre 1999 e 2008); a proposta de OE 2011 não parece dar o passo decisivo na adopção de métodos indiciários, apontados pelos fiscalistas desde há muito como a única solução para a evasão fiscal generalizada por parte das empresas; a evasão fiscal via paraísos fiscais (offshore da Madeira incluído) continuará a ser prática corrente; o princípio do sigilo fiscal continuará a ser a regra, a não ser para as empresas menos hábeis ou mais azaradas.


Em suma, se é verdade que a opção pela austeridade, pelo desperdício de recursos e pela crise social – que constituem a essência da proposta do OE para 2011 – surgem como inevitáveis neste momento, mais uma vez o governo não parece empenhado em aproveitar a oportunidade para proceder à necessária correcção das injustiças decorrentes do sistema fiscal de classe que é descrito por este artigo do Público. Como se afirma nesse artigo, um combate sério à evasão fiscal no passado teria evitado este PEC III. Tomar tais medidas agora provavelmente não evitaria a necessidade de aumentar o IVA, de conter salários ou de reduzir contribuições sociais. Mas daria um sinal de empenho na construção de uma sociedade mais decente. Tudo aponta para que esta seja mais uma oportunidade perdida.

1 comentário:

  1. "...o governo português não tinha grande opção senão enveredar por esse caminho...". Outro governo, não tinha? Claro que este não tinha... nem queria, ou queria? "...só ao nível da UE é possível resistir a esta trajectória...". Só? Então a Greve Geral de 24 de Nov. é uma perda de tempo, não? E as lutas de França, da Grécia, etc. igualmente? Talvez só uma greve geral conjunta europeia é que valerá qq. coisinha? Ou nem isso? Quer dizer que até que UE tenha a revelação da mudança - "Recusar as regras do jogo que são impostas a partir de fora, neste momento, traria ainda mais custos económicos e sociais."? É assim sem mais considerações? Gostaria que o autor explicasse esta.
    "Em suma, se é verdade que a opção pela austeridade, pelo desperdício de recursos e pela crise social – que constituem a essência da proposta do OE para 2011 – surgem como inevitáveis neste momento...". Como assim, terei lido bem? Será que um governo decente, este não, claro, não poderia hoje fazer mais nada, nadinha, senão apenas não “perder a oportunidade”… de não ser tão neo-liberal?
    Ou eu já estou maluco ou limitar-se a estas "ideias”, num momento em que o governo ataca desbragadamente a esmagadora maioria só para servir os mais poderosos e essa maioria ainda anda toda acagaçada, é mesmo gostar de dar tiros no pé. Ou não?

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