Nos últimos anos, a política de austeridade tem esmagado todo o debate público em tornos da política económica e, para se instalar firmemente no senso comum, tem recorrido sem pingo de vergonha, a instrumentos de manipulação intelectual cada vez mais rasteiros. Neste estado de coisas, a comparação entre a economia e a nossa casinha, entre o orçamento do Estado e a nossa conta bancária, entre o Ministro das Finanças e a dona de casa poupadinha, infectou por completo aquilo que passa por opinião de "especialistas", que se alongam sem se rir nesta alegoria da caserna.
Para qualquer economista ou próximo disso que se leve minimamente a sério, este discurso é, pura e simplesmente, impronunciável. E não, não é pedagogia. É uma aldrabice intelectual. Mas ela está de tal forma disseminada que vários ladrões já tiveram de perder algum tempo a desmontá-la. Nessa linha, tentarei clarificar algumas razões pelas quais estas realidades são incomparáveis. Não será uma lista exaustiva, nem de perto nem de longe, mas servirá para mostrar que essa comparação não é inocente e não é inútil. É uma comparação activamente enganadora.
Tomemos como exemplo o problema do consumo: quando a família Silva decide (ou é obrigada) a "apertar o cinto", essa decisão pode ser sensata ou inevitável ou as duas coisas. E as consequências dessa decisão podem ser muito vantajosas para a situação orçamental dessa família, a não ser, claro, que a carência económica coloque a família em situação de incumprimento de dívidas, que a obrigue a tirar filhos da escola, que a impeça de comprar casa ou outras coisas de que os especialistas se ocupam pouco. Mas, enfim, talvez a coisa se fique por aí...
Se houver dez famílias a fazer o mesmo que os Silva, o problema mantém-se na mesma dimensão. Talvez o Merceeiro da rua tenha alguns problemas, mas o impacto continua, provavelmente, a ser limitado. Mas e se houver milhões de famílias por sensatez ou inevitabilidade a fazer o mesmo que os Silva? Aí o caso muda de figura... Aí temos empresas a fechar, trabalhadores a perderem o emprego (e o salário), menos consumo e um ciclo vicioso recessivo difícil de controlar. Pelo que obrigar a que isto aconteça pode ser muito pouco sensato.
Se o orçamento do Estado é pensado nos mesmos termos em que os Silva pensam o seu orçamento familiar, o resultado pode ser uma surpresa desagradável, mesmo do ponto de vista do ajustamento orçamental. Não acreditam? Olhem para a Irlanda. Durante anos, os liberais cantaram hossanas ao "trabalho de casa" da Irlanda. Agora, a Irlanda está a chumbar mais desgraçadamente que o menino Tonecas e os liberais estão todos caladíssimos sobre o assunto.
Infelizmente, é assim que o Governo continua a formular o problema das contas públicas: temos de cortar 4.500 milhões de euros no orçamento. São contas de dona de casa. O Governo acredita, ou finge acreditar, que é possível operar um corte desta dimensão, sem que isso tenha consequências na dinâmica da economia que, por sua vez, se repercutirão na receita fiscal e na necessidade de mais despesa social. Inversamente, despreza o papel que uma política mais sensata, centrada no crescimento poderia ter numa evolução positiva destas variáveis
Essa é uma das diferenças entre analisar as escolhas de um agente e as necessidades de uma economia complexa em que os vários interesses são fortemente interdependentes. O factor que mais tem contribuído para o tímido crescimento da economia no primeiro semestre é o consumo. Esse é, de resto, o problema mais grave das empresas, juntamente com a ausência de crédito. A falta de encomendas tem sido a razão primeira de grande parte das falências que se têm multiplicado ao longo dos últimos dois anos.
Dir-nos-ão que o problema é um problema de liquidez. Que, pura e simplesmente, não há financiamento possível para políticas expansionistas e isso é um problema real. Mas então que se faça as perguntas correctas, pela ordem correcta: 1. Quais as áreas de investimento público estratégico para relançar a nossa economia e criar emprego agora? 2. Como encontrar os recursos para financiar essas políticas? Como se costuma dizer, uma pergunta bem feita é metade da resposta...
«os vários interesses são fortemente independentes»
ResponderEliminarquerias dizer "interdependentes"?
Exactamente. Já está corrigido no texto...
ResponderEliminaré meta da res
ResponderEliminarde pública res é vero
agora se a metade da resposta está lá
devo ser curto de vistas
como o governo e o chefe da famíla Silva o senhor professor que não lê jornais que lhe dão urticária ou davam
Ou seja, as famílias Silvas devem endividar-se fortemente junto da Cetelem para não arruinar a economia nacional. Estou a ver. Quando a Cetelem aplicar taxas de 30% por dinheiro que dificilmente irá recuperar passam a malandros bandidos especuladores. Tem comissão?
ResponderEliminarEduardo,
ResponderEliminarLeu alguma coisa no texto? Uma frase que fosse?
Caro J Gusmão,
ResponderEliminarO seu texto está calro como a melhor àgua. Infelizmente sobra quem não saiba ler as transparências. A minha questão é outra. É saber se lá no fundo da transparência, este estado da economia que tão bem descreve não é um balão insuflado de liquidez a que nunca corresponderam recursos concretos...Será legitimo questionar se estamos a tentar defender um padrão de prosperidade que nunca teve fundações nos recursos disponiveis ? E esse reconhecimento poderia, nesta altura, fazer parte da solução ou do problema ?
Como sabe andam por aí apóstulos do "decroissance", embora não façam a minima ideia de como operar a transição sem perder a prosperidade...
Cumprimentos
Ok, então o Estado deve endividar-se fortemente junto dos "especuladores" para entregar o dinheiro aos Silvas. Claro, os filhos vão ter que andar a penar para pagar essa dívida mas isso é um problema para resolver depois.
ResponderEliminarEduardo,
ResponderEliminarOs nossos filhos irão pagar tudo o que estamos a fazer agora. Se a dívida aumenta vão pagá-la, mas atenção, vão também herdar os créditos, se essa dívida pública for interna...
Mas, sobretudo, também vão herdar o resto: o atraso, o desemprego estrutural, a ausência de crescimento...
Manuel,
ResponderEliminarAs duas questões que coloca davam centenas de posts. Só duas questões rápidas:
1. Sobre a liquidez, depende. É verdade que houve um crescente endividamento das famílias. Mas ele ficou a dever-se em primeira instância a uma redução do peso dos rendimentos do trabalho. A forma como o recurso ao crédito foi activamente encorajado quer pelo sector financeiro, quer pelos poderes públicos, serviu como contraponto a essa redução do peso dos rendimentos do trabalho. Foi uma forma de suster a procura num contexto de contracção dos rendimentos.
2. Sobre a questão do crescimento. Não sou um apologista das teses do decrescimento, até porque muitas das actividades e indústrias que contribuem para resolver problemas de recursos finitos ou de sustentabilidade ambiental contam para o PIB e, portanto, SÃO crescimento. Isso não quer dizer que não haja reduções sectoriais como, de resto, sempre houve. É o caso, por exemplo do nível de recurso ao transporte individual, que, mais tarde ou mais cedo, terá que ser reduzido.